The smoothest of smooth jazz: ideologia e vida no subúrbio

Review de Shakatak - On the Corner

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Não é difícil perceber que o Coral do Exército Vermelho interpretando Katyuscha, ou as criancinhas chinesas dançando com o livro vermelho na mão, ou o Putin tocando vários clássicos soviéticos no piano na sala de espera do Xi Jinping (aconteceu ontem) são todas flores finas da ideologia, produto ideológico em estado bruto. É fácil de identificar não porque estamos numa posição exterior a qualquer ideologia, mas porque estamos simplesmente informados por uma configuração ideológica diferente.

É muito mais difícil perceber, por exemplo, como a música popular ocidental é, em suma, propaganda do capitalismo de mercado, porque é a música que nós conhecemos – a música com que acordamos às 6h da manhã tocando no despertador antes de pegarmos o ônibus para o trabalho, a música que ouvimos enquanto tomamos banho para que não soframos com mais de 5 minutos semi-ociosos, a música que embala o shopping center para que a experiência toda seja muito mais azeitada.

Bella Ciao até hoje arranca arrepios de qualquer um que se sensibilize com a resistência anti-fascista na Itália. It’s a Long Way to Tipperary ainda evoca o mesmo tipo de entusiasmo que embalou os soldados britânicos que marchavam em direção à Primeira Guerra Mundial. A boa arte – aquela que transcende gerações, que serve de suporte perfeito para a manifestação de um conteúdo, que cristaliza um momento único da história mundial – se faz perceber por si só.  E em termos de modos de vida do capitalismo tardio anglo-saxão, pouco se conseguiu, em qualquer dos lados do Atlântico, que não tenha sido feito de forma igual ou melhor pelo Shakatak, grupo de smooth jazz dos anos 80, pioneiro do easy listening e encarnação do capitalismo em obra.

A faixa ‘On the Corner’, que também dá título ao álbum em que primeiro apareceu, apresenta de modo único (e, eu diria, ideal), a vida do cidadão americano que mora no subúrbio de uma média ou grande cidade. A vida numa vizinhança em que todas as casas são iguais, o cachorro da família, a longa jornada de casa até o trabalho na metrópole, a minivan para carregar os filhos. Tudo está lá.

“The day was long/ But time has passed/ I count the minutes/ Till we meet at last!”. O eu-lírico de On the Corner faz saber: “O dia foi intenso. Trabalhei MUITO. Finalmente estou em casa. Que BOM estar em casa. É sexta-feira, amanhã é sábado. A semana acabou e eu estou LIVRE. A vida, meu bem, é linda, linda! Marcamos, Tom e eu, de sair para um barzinho com a Pam e o Josh, que não vamos faz meses! Não tem NADA que vai me segurar, hoje a noite vai ser nossa!”

“The moon is high, the night is young/ The time is right for meeting everyone/ Just hanging out with friends of mine/ No other way to spend a better time!” A letra da música, em texto e subtexto, desenha-se de tal forma a soar como uma EXPLOSÃO de sabor na boca de quem a consome. Porém uma explosão agradável, que não machuca, mas que só serve para dar mais alegria. As vocalistas cantam com uma voz muito suave, quase cochichada. A voz é uma massagem no ouvido do espectador, que deu o seu melhor durante a semana inteira e agora merece seus louros. O sintetizador também trabalha para que a atmosfera não dê espaço para qualquer questionamento existencial, ou pragmático, ou teológico… Enfim, nenhum questionamento :~) Acabou a hora de ter problemas, agora é hora de aproveitarmos a vida!

“I can’t pretend, I can’t wait to see you again!”. Se a pintura do “Par de Sapatos”, de Van Gogh, como diz Heidegger, é capaz de mais verdade do que o próprio par de sapatos original, que Van Gogh teria comprado num mercado de pulgas e retratado no chão de seu studio, On the Corner, na sua apresentação da vida suburbana americana, é capaz de revelar mais do que quaisquer uma de suas vozes poderia conceder. 

“When we meet on the corner/ Life is sweet when you are here/ As we meet on the corner/ Then my life’s complete/ When you are here!”. A inclusão dos pontos de exclamação foi uma liberalidade minha, mas que não podia ser evitada. A música inteira é sorrida, mais que cantada. Um sorriso, porém, que esconde e revela ao mesmo tempo. Um sorriso que se afasta de um casamento que está em ruínas, e que ainda só não culminou num divórcio porque ninguém sabe o que fazer com os três filhos (dois adolescentes e uma criança de 9 anos). Um sorriso que exala Xanaxquando pressionado, que aponta para o tarja-preta que o marido usa para conseguir dormir e para o Adderall que as crianças tomam junto com suco de laranja no café da manhã :} “Pam e Josh, eu adoro vocês!!!” :+))

Para o sujeito de On the Corner, “a vida está completa quando nos encontramos na esquina”. Uma tradução mais liberal também admitiria um “quando nos encontramos num canto”. Dadas as condições, o declínio de qualquer confiança em qualquer coisa, a incapacidade de conectar qualquer pecinha desse quebra-cabeça infinito que é a vida em qualquer outra, a melhor coisa que pode acontecer no universo de alguém é encontrar alguém num canto. Nada mais. Não há perspectivas. O auto-engano e a ilusão mútua são os únicos caminhos possíveis.

A capa do álbum é inclusive assim ilustrada: um canto ou esquina, como sugere o título, porém com umas bolas vermelhas por cima, carentes de qualquer possibilidade de explicação. E a música, afinal, não acaba. Baixa-se o volume. Fade-out infinito. O canto é varrido para baixo do tapete, as questões existenciais são, no dia seguinte, novamente mantidas em cárcere, desta vez não pela bebida mas pelo remédio. Até que ressurja, talvez, tudo que foi represado, reprimido, em algum momento futuro. Não há como saber. A última frase cantada não acaba propriamente, apenas some na escuridão do silêncio. Seria possível em algum momento ouvir de volta seu eco? 

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