Peguei o T1 do Bourbon da Ipiranga até minha casa há pouco. Sentei na janela. Lá pelas tantas, pouco depois do Planetário, passa um brigadiano de moto na rua, do lado e na mesma velocidade que o ônibus, de pé na moto. Acompanhei pela janela e o registro que fiz foi uma coisa ridícula: “ele tá descumprindo uma lei de trânsito” ou até algo mais simples: “tá errado andar assim em cima da moto”. Passa que o brigadiano de pé na moto assim o estava era pra fazer o que acabou fazendo: passar devagar do lado do ônibus observando atentamente tudo que tinha dentro. Quando me dei conta, gelei. Tenho medo de polícia. Fiquei passando rápido mentalmente o que poderia estar acontecendo. Alguém denunciou alguma coisa que aconteceu na região e eles tão procurando suspeitos? A motorista do ônibus tinha feito algum sinal de que tinha alguma coisa errada dentro e aí um policial viu? O primeiro pensamento, porém, foi: destituíram a Dilma, alguém tomou o poder e dissolveu o Congresso; O chefe da Brigada do Rio Grande do Sul passou o poder das tropas para o novo presidente da república, que baixou um decreto mandando que todos os petistas fossem removidos à delegacia de polícia mais próxima para prestar esclarecimentos.¹
pausa para uma pequena nota¹ de lamento: em 64 o inimigo público da direita era o comunismo (fim da propriedade privada dos meios de produção/sociedade sem classes/fim do Estado). hoje, pra se ter uma ideia do problema, o inimigo é algo ordens de magnitude menor, o petismo (reforma gradual/pacto conservador/conciliação de classes). é um projeto reacionário de golpe contra um projeto conservador. mas enfim.
Eu não sou petista, mas talvez tenha cara (barba/óculos/mochila/camiseta do Star Trek configura cara de petista?), por isso temeria. Os primeiros alvos, porém, seriam aqueles de roupa vermelha. Olhei ao redor, eram quatro naquele ônibus. Um estudante de engenharia civil com camiseta da turma. Um sujeito de pólo com listras brancas. Uma senhorinha com blazer combinando com a calça, e o quarto sujeito vestia aquelas camisetas de uma cor só da Gang. Este último não teria nenhum elemento semiótico exculpante inscrito na vestimenta – seria o primeiro a ir pra revista. Depois dele, os demais com cara da petista, grupo em que eu já me punha como incluso. Comecei a pensar nas coisas que tavam comigo. Chegaria o brigadiano do meu lado e pediria pra eu abrir a mochila. Eu abriria o bolsão principal e enquanto isso ele me perguntaria o que eu fazia. Sou estudante, eu diria, já temendo por como isso me faria parecer mais petista. Nisso ele começaria a tirar as coisas da minha mochila. “O que é que é isso?”. Eram dois xerox encadernados de comentadores do Habermas. Eu diria que eram livros da faculdade. “Que que tu estuda?”. Engenharia, eu responderia. “Engenharia do quê?” (algumas engenharias são mais petistas que outras). Civil, eu diria, pra tentar livrar minha barra. Ele fuçaria mais um pouco, no meio dos papéis. Tiraria a piauí de março, com uma aedes aegypti na capa, e dispensaria achando que fosse folheto de campanha do governo do estado do Piauí contra o Zika. Com a mão saindo do fundo da minha mochila ainda aberta, tiraria de dentro um livro verde. Eu acompanharia o movimento com o canto do olho, enquanto viraria o rosto. Na capa do livro, as palavras que me trairiam: “Filosofia do Direito, G.W.F. Hegel”. Desse objeto ele não teria dúvida. Junto com Marx e Marilena Chauí, Hegel aparecia impresso no mural de cada batalhão da Brigada Militar do RS como membro do triunvirato de intelectuais do PT. O tratamento com quem quer que se ligasse a esses nomes deveria ser implacável. Eu seria então algemado e levado para o Palácio da Polícia, a algumas esquinas de distância. Lá, ficaria jogado numa cela até aparecer o delegado de plantão. Do lado de fora, o Brasil pegando fogo. Lá dentro, eu esperaria sentado no chão, até então sozinho na cela. O delegado chegaria pelo lado de fora e diria meu nome. Eu permaneceria quieto, olhando pro chão. “Parece que teve alguém aqui lendo Marilena Chauí, é isso mesmo?”. O soldado que acompanharia o delegado diria “Esse aí no caso foi Hegel, senhor”. “Ah, Hegel!”. Eu acenaria com a cabeça. “Quer dizer que não tem princípios morais universais e necessários então, ô? O juízo sintético a priori do imperativo categórico é o quê? Tô inventando?” O delegado seria um conhecido kantiano linha dura, dos piores da corporação. Eu diria que achava que a única coisa era que a determinação de um conteúdo histórico… “Conteúdo histórico é o caralho. Age de acordo com uma máxima universalizável, seu filho da puta! A razão é imperativa!”. Eu acenaria mais uma vez com a cabeça. O delegado falaria para o soldado algumas palavras que eu não entenderia e eu seria levado embora dali, talvez sem nunca mais ser visto.