“Rituais satânicos, crânios de gato… Os 7 mistérios das catacumbas de Paris”, diz a manchete do Le Nouvel Observateur [http://tempsreel.nouvelobs.com/photo/20140822.OBS6976/rituels-sataniques-cranes-de-chat-les-7-mysteres-des-catacombes-de-paris.html]. Vejam as fotos.
Nesse ano saiu um filme chamado Assim na Terra como no Inferno (“As Above, So Below”), que se passa nas catacumbas de Paris – um dos lugares mais interessantes dos não muitos que eu já visitei. O filme é um terror totalmente ficcional, mas as locações são bem reais.
Paris tem uma rede de caminhos subterrâneos incrivelmente grande. Há túneis por baixo de toda a cidade, que começaram a ser abertos por volta do século XVI, se não me engano (não estou a fim de pesquisar a data correta), para comportarem os ossos dos cemitérios da cidade, que estavam cheios na época. Assim que enchiam os cemitérios onde as pessoas eram enterradas, pegava-se os ossos e enfiava-se nas catacumbas. Tem osso clérigo, de nobre e de quem construiu a estrutura lá embaixo – tudo misturado, sem identificação, o que é o mais divertido.
Além das partes que servem para despachar osso velho de cemitério, a mesma rede foi aproveitada e expandida para fins de mineração, distribuição de fiação telefônica, operações militares durante as guerras, construção de poços para coleta de água etc. A água das torneiras da cidade, aliás, é em parte extraída de lugares que podem ser acessados pelas catacumbas. A água lá embaixo é cristalina e perfeitamente potável.
Quando visitei Paris, há alguns meses, acabei conhecendo um pessoal doSciences Po, e no meio deles uma galera que se apresentava como cataphile [‘cata’ de catacumba e ‘phile’ de ‘filo’, amor]: pessoas que gostavam da vida subterrânea e de explorar as catacumbas. Um deles me convidou para visitar. E eu fui, sem fazer muita ideia do que era uma catacumba.
Existe a parte das catacumbas aberta a visitação, que é toda bonitinha e cheirosa; *e* existe todo o resto, em que é proibido entrar. Foi nesse resto que nós fomos, por óbvio
Andar fora da parte aberta ao público é proibido desde 1955 e tem uma multa para quem é pego fazendo isso. A multa é aplicada por uma ~polícia subterrânea~, chamada de ‘cataflic’ pelos frequentadores, cujo principal objetivo é frustrar a vida do povo que quer ir lá embaixo ficar de boa. Acontece que o número de cataphiles é muito maior do que de cataflics, então sempre que a polícia constrói um muro de concreto para trancar uma passagem, não demora muito para ser cavado um desvio logo ao lado.
Existem diversas formas de entrar nesses túneis – metrô, bueiros etc. Nós entramos em uma fenda numa parede de um túnel terrestre por onde passava uma linha de trens de carga que hoje está desativada. O Tom, cataphile que me acompanhava, disse que não poderia propriamente me explicar o caminho, por uma questão de segurança; mas apesar disso (ou, mais provavelmente, justamente por isso) eu acabei decorando cada passo do trajeto, a ponto de eu saber chegar sozinho no lugar se precisasse fazer isso hoje, por exemplo.
Levamos umas frutas e uns pães em lata cada um em uma mochila. Era perto das 22h. Cada um tinha uma lanterna daquelas de pôr na cabeça, e eu estava ainda com um capacete de ciclista. Eu achei que seria meio idiota eu andar com um capacete quando o resto do pessoal que frequentava deveria estar sem. Porém, eu sou alto, e os túneis são baixos. A experiência me mostrou que se eu não tivesse usado o capacete eu provavelmente teria tido algum problema mais sério numa das inúmeras vezes em que dei com a cabeça no “céu”, como eles chamam o teto do túnel. Caso víssemos alguém lá embaixo, fui orientado a não parecer muito deslumbrado com tudo, para não dar na cara que eu era um “touriste”, que não são muito bem vistos pelos cataphiles mais ortodoxos. Assim fiz.
Eu desci primeiro pela entrada, e esperei o Tom lá de dentro. “Vai pra direita” ele disse. Eu entrei, fui pra direita. Tinha um muro na direita. Aí nesse momento todos os piores pensamentos passaram pela minha cabeça. Se ele tivesse uma arma e quisesse me matar, ou então me deixar trancado até morrer de inanição num labirinto penumbroso daqueles, ele poderia. Mas aí num daqueles lapsos de racionalização egoísta (exercício mental de justificação das coisas que eu faço para deixar o mundo mais agradável para mim), pensei que eu tinha tido uma boa vida até aquele momento. 20 anos de uma boa vida. Se eu morresse não seria lá um grande problema. Mas felizmente eu acabei não morrendo, apesar do pensamento ter retornado algumas vezes no meio do percurso. Enfim.
A polícia subterrânea aparece de vez em quando e dá multas e enche o saco. Diz o Tom que eles pegam mais leve se você tiver um mapa quando for pego. Nós não tínhamos um mapa. Na parede dos túneis aparecem, vez ou outra, uma placas dizendo embaixo de qual rua você está, o que dava uma ajudada.
Nos primeiros minutos nós passamos por um túnel bem longo e reto. Nesse momento eu já estava achando ruim eu ter que ficar ligeiramente agachado durante o caminho inteiro porque eu calhava de ser uns poucos centímetros mais alto que o túnel. Tinha água nos nossos pés e ela tinha uma cor turquesa muito bonita. As paredes eram todas molhadas, porque o lugar era obviamente muito úmido. Dali sai a água do sul de Paris. Havia umas cavidades no chão e dali um pouco o Tom avisou que teria um poço à esquerda, e era pra eu cuidar, já que era um poço e poços costumam ser fundos. Deu alguns passos e eu não cuidei nem um pouco. Tropecei, caí no chão e falei “ah”. “AAAHH!’, respondeu o Tom, olhando pra trás. O poço tava à minha esquerda. “Wow, tu tá bem??”, perguntou o Tom. Eu tava. Eu sei nadar, mas se tivesse caído no poço eu teria morrido imediatamente só de susto e tensão.
Continuamos. Fui apresentado à maravilha que são as “salas” construídas pelos cataphiles, espalhadas por quilômetros de túneis. Tudo escavado na pedra e no chão. Alguns às vezes trazem britadeiras para facilitar o processo, e ajudar a destruir os muros que os policiais constroem. Passamos por salas de cinema lá dentro. Mesmo. Tem uma parede pintada de branco, espaço para um projetor e cadeiras de pedra. É só trazerem um projetor e um gerador de energia e fazer uma sessão de cinema. Achei fantástico. Em algumas salas há pinturas nas paredes, mensagens, códigos para cataphiles… As pessoas se reúnem para fazer festa, conversar, discutir, enfim, ter um lugar pacífico que muitas vezes não se encontra na superfície.
Topamos com um grupo de três estudantes de lycée, ensino médio francês, de uns 16~17 anos, imagino – dois meninos e uma menina; e a partir daí fomos explorando juntos. Numa hora chegamos na salle du chateau (a primeira foto da matéria :D), e ali ficamos conversando por um bom tempo. Todos eram bem queridos. Era madrugada de domingo para segunda, já. Eu me esforçava para falar um francês que deveria sair tudo errado e um dos meninos com quem eu conversava se esforçava para falar inglês. Dizia ele que os colegas dele não entendiam como ele poderia gostar de fazer isso – passar as noites nas catacumbas – e achavam ele meio bizarro. Diz ele que os colegas só vão pros ~night clubs~ no final de semana porque nunca vieram nas catacombes e não sabem como é bom. Achei o máximo! De fato, os colegas vão pros clubs porque é isso que se espera que um adolescente faça, né? Ele que estava sendo revolucionário e pensando fora da caixa. Achei realmente ótima a atitude.
Depois de sairmos daquela sala, nos despedimos dos novinhos e passeamos mais um pouco por uns lugares meio punk. O Tom me disse pra cuidar porque estávamos passando por uma túnel onde o “céu” era meio perigoso e às vezes caía. Minha perna tremeu um pouco. Nós estávamos muito longe do lugar por onde entramos, e aquele caminho dava pra uma outra saída, muito mais próxima. Ele disse que o caminho era meio complicado. Fomos indo. O caminho foi complicando mesmo. O túnel era cada vez mais estreito, meu tênis já tinha furado, o horário estava bem avançado e eu estava bem cansado de tanto caminhar. Nós tínhamos esquecido de levar água (!) e eu estava com muita sede. Bebi um pouco da água do chão – me disseram que era potável. Andamos mais e chegamos a um ponto onde o túnel era bem pequeno. Não dava para engatinhar porque minhas costas ficaram raspando no teto. Tinha que rastejar. Eu disse que eu achava que não ia rolar. Alguém mais claustrofóbico já teria passado mal há muito tempo. Tentei, mas não rolou mesmo. Voltamos pelo caminho original, que era bem longo.
Eu não faço ideia de quantos quilômetros nós percorremos naquela noite, mas foram muitos. A situação era pior para mim, que era mais alto que a maioria dos túneis, e tinha que andar curvado ou agachado. O caminho até a saída parecia que não ia chegar nunca e eu já estava com sono e cansado. Já tinha me acostumado com o ambiente, então em último caso não seria um grande problema dormir lá mesmo. Mas o Tom disse que já estávamos chegando. Então chegamos. Me senti aliviado por ter saído daquele lugar, que era fantasticamente sensacional e ao mesmo tempo meio tenebroso porque era subterrâneo, labiríntico, ilegal e meio perigoso.
Eu estava fascinado, obviamente, e o Tom parecia que tinha saído da padaria e nada poderia ser mais normal do que o lugar que acabávamos de visitar, exceto o fato de estarmos cheios de lama do pé à cabeça.
Caminhamos pelo trilho do trem e pulamos a cerca que tínhamos pulado para entrar no trilho, agora saindo. Em menos de dez minutos desde então já estávamos em casa. É absurdo pensar uma coisa dessas, que debaixo da cidade, tão perto de casa, tem outra cidade tão grande quanto a primeira, mas completamente diferente em todos os sentido, e literalmente underground. Fiquei animado pelo parcours. Me animou a descobrir o subterrâneo de Porto Alegre, eventualmente. rs