Um clube de chá do subúrbio da Califórnia dentro do elevador do hotel. O bruit des vagues da Polinésia Francesa na sala de estar de um novo rico no alto de um arranha-céu de Tóquio. A mundialização e a hiperconexão, enquanto movimentos de dissolução da consciência histórica que acumuláramos até o terceiro quarto do século XX, são ao mesmo tempo motores da aceleração do tempo e espelhos da dobra do espaço. O mundo, no século XXI, já desconhece qualquer fronteira simbólica, e repete-se como simulacro de si a todo instante e em todo lugar
A música pós-internet, epitomada no surgimento do vaporwave nos anos 2010, já nasce num espaço que busca sua própria afirmação como não-espaço; brota de uma semente solidamente plantada no meio do ar. O displacement-deslocamento geográfico é característica essencial do vaporwave e tendência na produção musical eletrônica pós-2000. Uma questão que ainda subsiste, porém, é se é mesmo possível qualquer produção artística desvinculada de um contexto cultural determinado, específico e, mais importante, regional. Pode existir uma música atópica, universal, que não provenha de uma rede de conexões e referências locais?
A questão da possibilidade da música verdadeiramente universal, de certa forma central no vaporwave, é o que está em jogo em MUSICAS PARA CHURRASCO VOL 1. Apesar de difícil falar do estilo como algo homogêneo, a característica de troça com a estética da globalização e do consumo é presente em muitos focos de produção e reprodução do gênero. Computadores dos anos 90, ideogramas japoneses e o logotipo ubíquo do Windows 95 se juntam para criar uma esfera de hiperglobalização retrofuturista, onde é indiferente se a música distorcida e sincopada de quinze ou vinte anos usada como sample foi produzida em estúdios da Universal nos Estados Unidos ou lançada por um selo independente do subúrbio de Tóquio e distribuída para duas dúzias de diletantes.
Seria essa dinâmica um exemplo de que o estado de globalização total que possibilita a ascensão dos estilos pós-internet — vaporwave, chillwave, futurefunk etc. — a gêneros hegemônicos na praça virtual teria alcançado um nível global? Em outras palavras: as condições de possibilidade da universalidade do vaporwave seriam elas mesmas universais, ou estariam ainda restritas geográfica e culturalmente a espaços como os Estados Unidos, a Europa e o Japão?
A questão que nos apresenta a playlist MUSICAS PARA CHURRASCO VOL 1, organizada por N3W70N 147, é a da própria possibilidade de atribuir predicados nacionais à obra de um estilo que se pretende universal e radicalmente contrário à borda — que opõe à borda a dobra. Faz sentido falar, nos pergunta N3W70N 147 de forma pungente em seu álbum, em um “vaporwave brasileiro”?
No campo dos estudos culturais e de forma mais ampla a questão tomou corpo e ficou conhecida através da disciplina de estudos pós-coloniais e de seus críticos, envolvidos, by and large, com a seguinte questão: o modo de produção capitalista e suas consequências sociais, políticas, discursivas e estéticas já teriam atingido um nível global? A terra arrasada que o capitalismo global causa às culturas e mores locais já teria “desmanchado no ar” as formas tradicionais e lhes imposto modelos adventícios de relacionamento social no mundo todo? Ou não, ainda sobrariam espaços de resistência à lógica totalizante da transmogrificação cultural capitalista?
O clima etéreo e a distorção temporal sobressalente que perpassa MUSICAS PARA CHURRASCO VOL 1, somados aos samples de canções que se popularizaram no Brasil nos anos 2000, ao criar uma diferença que é perceptível através do registro sonoro, parece tratar de um ponto: uma vez que a universalidade total das condições de produção do universal ainda não chegaram, ou não existem, o modelo universalista de geração de vaporwave não pode senão ser oriundo exclusivamente do subúrbio americano, geográfica e culturalmente determinado em sua totalidade, por mais universal que se apresente. Particular, ainda que o negue.
A ideia de um vaporwave brasileiro traz um localismo que não é comum no mainstream da produção do gênero, justamente porque não faz parte do mainstream. MUSICAS PARA CHURRASCO VOL 1 consegue subverter a lógica da totalização hierárquica e vertical e afirmar-se como gênero ao mesmo tempo universal — porque compartilha do cânone — mas inegavelmente local, atado até os ossos às referências estéticas e culturais de um espaço determinado em um momento determinado.