Pouca miopia

Sobre usar óculos quase sem precisar usar óculos

Pouca miopia

Comecei a usar óculos relativamente tarde na vida. Eu devia ter uns 20 ou 21 anos, e a motivação para decidir fazer um exame de visão foi tripla. Em primeiro lugar, eu achava que talvez enxergasse mal de um olho. Me lembro de estar em uma aula de sociologia e ficar abrindo e fechando cada olho para ver se enxergava direito o quadro, e chegar à conclusão de que com um deles as coisas pareciam um pouco fora de foco. Sinto que em algum nível nossa visão sofre variações durante o dia. Quando se está cansado, é normal enxergar um pouco pior. Ou às vezes tem alguma coisa no olho que não dá pra tirar e que deixa a visão meio engordurada. De qualquer forma, pensei que talvez houvesse chegado a minha hora de precisar de ajuda de uma ferramenta para ver direito.

Em segundo lugar, eu tinha, na época, alguma pretensão intelectual. Viver a vida das ideias, das teses, dos livros, etc., o que historicamente implica algum grau de miopia. Na graduação em história da arte, lembro que uma das minhas professoras tinha um amigo esloveno que era fotógrafo. Além disso, era cego. O nome dele é Evgen Bavcar, e o trabalho dele é até bem interessante, explorando os sentidos de produzir imagens quando não se pode vê-las. Importa dizer, porém, que Bavcar, apesar de cego, usa óculos. Quando perguntado sobre o motivo, segundo minha professora, sempre respondia: “Sou cego, mas também sou um intelectual.” Há algo na atividade intelectual que evoca, na nossa memória cultural, a imagem de uma visão comprometida; algo a que minha mente de 20 ou 21 anos almejava como espécie de habitus necessário para poder frequentar a universidade, a pós-graduação (que na época aparecia para mim através da minha bolsa de iniciação científica), a vida aristocrática do conhecimento desinteressado. Usar óculos serviria de possível entrada simbólica neste mundo.

Em último lugar, mas ainda importante, essa era a primeira vez que eu tinha algum plano de saúde. Estava no Canadá para um intercâmbio e meu plano cobria um exame de visão e um par de óculos por ano. Lembro inclusive que na ocasião achei engraçado que, quando fui pedir o reembolso do plano, só precisei informar no formulário online o valor que havia gastado. Nenhum comprovante, recibo nem nada. Achei aquilo sintomático do Canadá.

Para os leigos, a miopia é quando o seu olho vai se tornando uma panqueca, e o ponto focal, que deve ficar mais ou menos no fundo do seu olho, fica mais para a frente. Por consequência, você vai tendo dificuldade para enxergar de longe. O oposto da miopia é a hipermetropia, em que seu olho vai se tornando uma coxinha, e o ponto focal fica mais para trás do fundo do seu olho—literalmente além (hyper) da medida (métros)—causando dificuldade para ver coisas próximas. As lentes corretivas para miopia, por esse motivo, são côncavas; as para hipermetropia, convexas. Todas as lentes corretivas operam alguma mudança na luz que passa através delas. Segurando-a a uma certa distância, as lentes para miopia fazem com que os objetos vistos através delas pareçam menores do que são. As para hipermetropia, maiores, como numa lupa. O que significa que as lentes para miopia parecem comprimir um pouco o mundo, e olhando para alguém que usa óculos para miopia, a impressão, a depender do ângulo, é de que as lentes às vezes engolem parte do rosto da pessoa.

De certa forma, era esse o efeito que eu esperava com os óculos: que quando me vissem, pensassem “que lindo que o Italo fica assim com os óculos comendo parte do rosto”. Que vissem, no mundo de trás da minha cabeça que aparecia agora para os meus interlocutores através dos meus óculos, comendo parte do meu rosto, um sinal de como eu deveria ser respeitado enquanto intelectual. Afinal, eu tinha miopia. Munido desse desejo, marquei o exame, fui ao oftalmologista e recebi, após alguns testes, o resultado. Meu olho direito estava perfeito. Meu olho esquerdo, por outro lado, estava comprometido: sofria de 0.25 grau de miopia.

Novamente, para os leigos, uma miopia de um quarto de grau é relativamente pequena, a ponto de o oftalmologista sugerir que usar óculos não era assim tão necessário, a não ser que eu preferisse. Naturalmente, preferi e mandei fazer um par no mesmo dia. As semanas seguintes aos óculos ficarem prontos foram de progressiva adaptação à vida com óculos, além das selfies agora também com óculos: estrategicamente, eu posicionava a cabeça em um ângulo que fazia com que o fundo ficasse ligeiramente engolindo a minha cabeça pela lente. Como meu grau era muito pequeno, porém, o ângulo tinha que ser preciso para que a foto capturasse alguma mudança visível. Com o olho direito era pior ainda, já que era uma lente sem grau, o que também me deixava inseguro de forma geral e constante (e se, numa palestra, por exemplo, tiver alguém sentado atrás de mim um pouco à direita, e quando olhar para os meus óculos perceber que se trata de uma lente sem grau, achando assim que eu estou usando óculos de lente sem grau, apenas para aparecer?). Talvez só pior do que não usar óculos era ser erroneamente confundido com alguém que usa óculos sem grau.

Por algum motivo que para mim nunca se tornou perfeitamente evidente, e sobre o qual jamais falei com meu analista, na minha trajetória como míope passei a nutrir certo preconceito com aqueles que possuem hipermetropia (acho até o gentílico meio ruim: hipermétrope?). Sinto que estão roubando dos míopes o direito de usar óculos. E que o olho comprimido das lentes para miopia é mais bonito que o olho grande das lentes para hipermetropia. Enfim.

Minha torcida—à revelia do que, eu imagino, manda o senso comum—era para que minha miopia piorasse, e eu pudesse não só me sentir mais confortável com um olho direito que também padece do mal, mas também com uma lente que distorcesse ainda mais o lado esquerdo do meu rosto, que deixasse ainda mais evidente que eu era uma pessoa míope, que eu não estava fingindo nada: meu problema de visão era de fato real, e me trazia uma série de empecilhos de ordem prática, psicológica, teórica, etc.

Com o passar do tempo—e mais de uma década vendo coisas bem de pertinho—minha visão de fato piorou, passando a me exigir lentes que distorcem o meu fundo além da dúvida razoável. Sigo, porém, antenado à expressão dos jovens que recém começaram a usar óculos, e que, sub-repticiamente, viram o rosto levemente para o lado nas selfies, decoram o fundo com uma paisagem natural, urbana ou doméstica complexa o suficiente para que a distorção da miopia seja aparente, ou que de outra forma nutrem similares neuroses associadas à experiência de ser pouco míope.

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