Há momentos em que sinto que a última nesga de previsibilidade que existia nos meus horários de sono se foi em definitivo e não deixou nenhum bilhete. O programa que tradicionalmente tenho feito quando esses momentos acontecem às sete da manhã quando eu ainda não dormi é botar algum livro ou revista debaixo do braço e caminhar com as roupas mais confortáveis das quais disponho até alguma padaria de conveniência para tomar café da manhã. Foi o que fiz hoje.
Fui numa que fica incrustada no coração do centro de Porto Alegre, na Coronel Fernando Machado. Na frente do Zaffari, quando cruzei vindo da Borges, tinha duas velhas esperando o mercado abrir. Do outro lado tinha um velho lavando a calçada e uma velha ajudando. Topei com mais três velhos passeando os cachorros e um policial velho entrando no postinho da polícia. Na Coronel Fernando Machado, aparentemente, só existem velhos, pelo menos no domingo de manhã. As únicas duas manifestações de jovens que eu vi – um grupo de meninas na sacada discutindo que fim levou o sexto quartinho dos seis que elas tinham distribuído na noite anterior e duas pessoas de cabelo rosa conversando na calçada – eram tão estereotipados que eu suspeitei que fossem cenográficos.
Padaria é o comércio de bairro por excelência. Não existe cafeteria ou mercadinho de esquina, por exemplo, que celebre relações interpessoais mais pessoais e únicas do que as de padaria. Sociologicamente falando, cada padaria é um campo próprio, com um habitus próprio. Uma investida numa padaria nova é como um primeiro dia num colégio desconhecido. A socialização é lenta e gafes e deslizes são inevitáveis. Enquanto eu entrava na padaria saía dela um velho de uns 90 anos, que era objeto de cumprimento pelos demais presentes. “Bom dia seu Jaime”. “Bom dia”, ele respondia. “Bom dia seu Jaime, tudo de bom”, disse a velha que sentava à porta, e o seu Jaime respondeu “Bom dia” e foi embora.
Cheguei no balcão e cumprimentei a atendente: “Tudo bem?”. Ela não respondeu. Óbvio! Não se diz tudo bem naquela padaria, se diz bom dia. Já dei a primeira pinta de estrangeiro. O estigma já era indelével. Todo mundo lá, naquele momento, já tinha a certeza mais absoluta de que eu era um completo boçal. Fiz meu pedido: uma torrada, um café e uma bomba de chocolate. “O café pode pedir ali no outro balcão”, ela disse. No outro balcão tinha três velhos do lado dos clientes, nenhum velho do outro. Me perguntei mentalmente se algum deles trabalharia lá, questionamento que aparentemente transpareceu no meu olhar, já que um deles disse “ela já tá vindo”, e eu fiquei aliviado. “Ela” era a velha que atende no balcão de cafés, que eu imagino ser dona do lugar. Pedi meu café, peguei a bomba e fui sentar para esperar a torrada.
Das seis mesas, cinco estavam ocupadas por velhos e uma, vazia. Sentei nesta última. Do meu lado esquerdo, um velho segurava o Diário Gaúcho e ostentava no rosto um prodigioso bigode, sobrancelhas caídas e a expressão inabalável de quem estaria cortando as unhas do pé enquanto Napoleão invadia a Prússia. De forma intercalada, ele lia o Diário Gaúcho, tomava golinhos do café e conversava com o velho do lado sobre a novela. Aquele era um ambiente respeitável de velhos respeitáveis. Para tentar me misturar, sentei com a perna cruzada, abri o livro, abri ligeiramente a boca e assentei meus óculos levemente sobre a ponta do nariz, de forma que, olhando de fora, pudessem enxergar em mim alguém que sabe de cor o refrão de pelo menos 30% das músicas do Air Supply *e* o resultado do jogo do bicho.
Quando terminei o café, levantei devagar e empurrei minha cadeira. Perguntei para a velha do café se era ali (apontando) que se pagava, e ela disse que sim e que já ia me atender. Fiquei com medo de que eles não aceitassem cartão, mas deu R$ 8,75 e eu tinha uma nota de R$ 10. Dei a nota de R$ 10, ela fez as contas de cabeça e me devolveu R$ 2,25. O correto seria R$ 1,25. Pensei por meio segundo no que fazer e decidi deixar assim. O constrangimento de dizer pra alguma pessoa naquela padaria que a conta dela estava errada superaria em muito o peso na consciência por ter me aproveitado de um pila a mais no troco.