Notas sobre o affair Mario Frias

Aos arqueólogos do futuro, para ajudar na identificação, primeiro o registro: no sábado, 20 de junho de 2020, a primeira página da Ilustrada, suplemento da Folha de S.Paulo, anunciou a escolha do novo Secretário de Cultura do governo federal, o ex-galã Mario Frias. A matéria é assinada por Talita Fernandes e Gustavo Fioratti, e tem como chamada “O homem do presidente”. Para ilustrala, uma foto em chiaroscuro do Mario Frias pimpão (abaixo).

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Alguns acharam graça (eu incluso), outros, não. Na condição de cidadão preocupado com a qualidade da esfera pública patrícia, venho através deste oferecer análise com maior profundidade, que o tema merece e cujo espaço não me seria franqueado no Twitter. Ou seria, mas com o risco de não aparecer na minha timeline ou na de todos os demais que bloquearam as palavras “segue o fio!”.

Senão, vejamos.

Quando a Folha saiu, de manhã, galera compartilhou foto da página caindo no gostoso exercício da galhofagem. O novo Secretário de Cultura da República Federativa do Brasil, afinal, era o ex-galã Mario Frias (vide foto). Likes, shares etc. Vera Magalhães, porém, logo se manifestou dizendo que tinha achado aquilo o ó. Numa palavra, a Folha estava sendo homofóbica.

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Também likes, shares etc. Foi curtida e compartilhada também por parcela da ala progressista da rede que achou aquilo tudo muito ruim: moralista, homofóbico etc. O affair Mario Frias provocou um microcisma na Esquerda Muito Online. Não quero dizer que uma percepção esteja mais certa do que a outra, mas gostaria de desdobrá-las brevemente para entender o que está em jogo. Não quero dizer que uma esteja errada por dois motivos, correlatos: um, porque acho que pouco importa o que a Folha *quis* dizer com a foto e manchete, algo que me parece que essa leitura da VM pressupõe. Acho que importa mais sacar quais tipos de leitura elas possibilitaram. E outra porque acho que a questão não é sobre estar certo ou errado, mas sobre que tipo de sensibilidade funciona para achar graça e qual não.

O argumento de quem não gostou, da forma como entendo, é que, ao usar uma foto do Mario Frias deitado num pufe e com as bochechas aparecendo, a Folha está insinuando que ele merece ser criticado por ter sido ex-galã, ou por ter feito um ensaio fotográfico semipelado. Este seria o aspecto moralista da capa. Julgaria a adequabilidade do Mario Frias não pelo trabalho prévio dele, que pode ser mais ou menos inadequado ao cargo, mas por ele ser modelo. A chamada, “O homem do presidente”, completaria o moralismo com uma sugestão homofóbica. Como a expressão é necessariamente lida junto com a foto do Mario Frias dourado, brilhoso e sorrindo para o fundo da alma do leitor, o termo “homem” poderia indicar algum tipo de relação sexual ou afetiva cercada por uma aura cômica. E como isso não é engraçado (tudo bem se o Bolsonaro for gay, okay!?), a referência é, portanto, homofóbica.

Acho que tem outras formas de situar o problema, mas o núcleo é esse aí. Está errado? Meeehhh… Não necessariamente. Concordo, geralmente tem formas melhores de julgar os políticos do que pela aparência, e, sim, claro, sugerir que alguém é gaaaaayy e rir dele não é legal, yadda yadda. Mas, acho esse tipo de postura meio autoconsciente demais. Em outras palavras, não acho que o argumento esteja errado, só acho meio brega. É uma espécie de sensibilidade muito hétero, que, na ausência de um quadro muito claro que informe que aquilo que está sendo representado pode ser lido entre aspas, ou de qualquer forma um pouco mais mil grau, toma tudo exclusivamente pelo valor nominal. Não quer dizer que seja uma sensibilidade típica de quem não entende ironia, mas é normalmente de quem gosta de usar o ~til irônico~, por exemplo. Também de pessoas que querem a paz no mundo, que gostam de tomar chimarrão na Redenção, leem o Quebrando o Tabu. E ouvem Anavitória, Francisco el Hombre e Letrux.

Dou exemplos de gosto de propósito, porque acho que essa é uma questão de sensibilidade, mais do que de preferência política ou de verdade científica. Um tipo de posição contrária, que achou graça da matéria, até tentou responder aos pontos da objeção inicial: primeiro, tudo bem fazer chacota moralista (ela seria até mesmo intencional), já que o governo é moralista. Em outras palavras, num governo antigay, fazer alguma sugestão meio homo não serve de chacota contra gay, mas sim de chacota contra um governo que odiaria ser associado com isso daí. Segundo, Mario Frias é um ator e modelo e nunca teve nenhuma atuação política. Enviesada e torta seria a opção da Folha em imprimir a imagem dele discursando num palanque, onde nunca esteve. O ambiente próprio dele é o estúdio, e a imagem só retrata isso. Terceiro, se fosse uma atriz e modelo que aparecesse deitada e de decote (a Mariah Carey, por exemplo), ninguém diria nada; por que diriam então de um homem?

Novamente, acho que todos esses argumentos têm seu valor. O último deles especialmente: focar na sensualidade, no corpo, na irracionalidade em vez de no rigor, na mente e na razão é estratégia tradicional para rebaixar alguém intelectualmente. Reclamar que isso esteja sendo feito contra o Mario Frias (o suprassumo da elite cheirosa brasileira, pra não falar no “privilégio”, em termos identitários) parece o mesmo que reclamar de racismo reverso: algo que não existe.

Mas, de novo, acho que essa é uma questão de sensibilidade, não necessariamente de opções políticas, porque acho que a graça da coisa está antes dessa argumentação toda. A graça envolve todos os elementos que aparecem na argumentação: o sorriso galã do Mario Frias, o fato dele ter sido um galã da Malhação e estar sendo indicado para chefiar um Secretariado de alto nível no governo federal, a manchete parecer da CARAS, ele estar com as bochechas à mostra etc. Nenhum desses elementos, e tudo mais que está na matéria, é automaticamente engraçado se você chegar a explicar em termos de qual intenção há por trás deles, ou de qual mensagem está sendo comunicada. É engraçado apenas por esses elementos estarem aparecendo todos juntos e numa matéria da Ilustrada. E é engraçado apenas para uma certa sensibilidade: uma sensibilidade estilizante, ou estetizante, interessada mais num tipo de juízo sensível do que moral, ou político. Quer dizer, uma sensibilidade capaz ler tudo entre aspas, e rolar um pouco nas infinitas possibilidades de leitura que existem entre o sério – o valor nominal – e a simples piada.

Rir do Mario Frias semipelado na Folha não é chancelar moralismo e homofobia, é justamente se negar a discutir nesses termos. É dissolver o pano de fundo moral que aparece, hoje, atrás de quase todo tipo de questão que surge na internet. É escantear o léxico moral e patrocinar a jocosidade, a chacota pura e simples, chafurdar um pouco na dubiedade e achar graça dela.

Claro que tentando explicar tudo isso eu acho que estou matando um pouco a graça. E nesse sentido acho que a resposta mais apropriada foi a que eu dei no RT do tuíte da Vera Magalhães: okay boomer.

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