Nota sobre radicalidade

Dois episódios recentes me deixaram pensando sobre a ideia de radicalidade, e sobre o que se quer dizer com ela e sobre o que talvez ela seja. Não quero conceituar nada precisamente—ando expressionista demais—, então não vou. De pano de fundo está a minha impressão de que, ao menos na academia anglófona, e por extensão também no resto do público leitor internacional engajado, radicalidade diz muito mais respeito a um tipo de postura ou de apresentação de si mesmo (o que envolve vocabulário e tom de voz, falado ou escrito) do que propriamente um tipo de crítica que atinge camadas mais profundas—no caso em que estou pensando, da realidade social, mas também de categorias do pensamento, por exemplo. Radicalidade é dizer coisas “com efeito”, ou com a intenção de provocar um efeito. É uma técnica de apresentação de si na vida quotidiana mais do que um modo de fazer teoria ou crítica.

Os episódios foram, primeiro, um texto com uma linguagem abertamente agressiva ao leitor, que o desafiava a rever suas opções de leitura do cânone do pensamento ocidental. Nada absolutamente novo em criticar os Grandes Livros, mas a diferença que me chamou atenção aqui foi que o texto, de meia dúzia de páginas, tinha um ou dois pequenos argumentos não desenvolvidos—eram, na verdade breves enunciados de teses, que o autor não chegou a se importar em defender. Então fiquei com essa sensação confusa de que, ao mesmo tempo, sou o leitor que deve aceitar essas teses sem a necessidade de nenhum processo de convencimento ou argumentação por parte do autor, e por outro lado também sou o leitor que merece receber algum tipo de puxão de orelha porque não observa atenta ou adequadamente essas mesmas teses. O ponto: o texto era uma tentativa, me pareceu, de dizer muito pouca coisa mas falando muito alto. Isso sob o mote da ruptura radical com o estado de coisas.

Segundo episódio, um colóquio online de meia dúzia de pessoas falando sobre um tema atual. A maior parte delas, trazendo informações muito chocantes sobre práticas de governo que passaram por baixo do radar da imprensa ou que receberam pouca atenção—números, citações diretas de oficiais, publicações no Diário Oficial. Uma das apresentações, porém, a que parecia mais abertamente crítica, era sobre como o neoliberalismo era fundamentalmente prejudicial à democracia. E o conteúdo era também um jogo muito abstrato de teses sobre estágio atual do modo de produção, mudança estrutural na estrutura do capitalismo, democracia etc. E, também, nada de errado com essas teses todas, só me chamou a atenção também a falta de ligar essas teses com qualquer evento no mundo que as exemplificassem, ou de fornecer qualquer outro tipo de argumento (metafísico, que fosse) sobre de que forma exatamente fases de mudança estrutural do capitalismo são prejudiciais à democracia. Acredito que possa ser, mas acho esquisito que o discurso deva já previamente contar com essa minha predisposição em aceitar as teses. 

Não sei o que tirar disso. Acho só que reforça um pouco a minha impressão de que a casca de vários tipos de discurso entendidos como radicais são muito frágeis. E que talvez, inversamente, o trabalho aparentemente inofensivo de apresentar coisas que de outra forma não seriam aparentes seja mais radical do que defender vigorosamente qualquer grande tese.

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