Ontem li um capítulo do The Egyptian Hermes, do Garth Fowden, em que ele trata da questão da tradução/interpretação da cultura e do mundo e linguagem do Egito antigo para uma mentalidade e linguagem helênicas. Parte desse processo, segundo ele, foi feita por parcela educada da elite egípcia que operava segundo maneiras de pensar (e falar) gregas.
O Fowden, se eu entendi bem, tenta identificar uma característica intrínseca à cultura helênica que a tornaria apta para chupar os modos de pensamento das culturas que a circundavam e traduzi-los em modos propriamente helênicos. Segundo ele, também se entendo bem, essa característica estaria principalmente na linguagem grega. Há trechos de escritos egípcios de 1~3 AEC em que reclama-se da pobreza da língua grega: enquanto a língua egípcia exprimiria propriamente, através de sua enunciação vocalizada, a força de uma palavra, a grega a isolaria de sua potência sonora, transformando-a de uma expressão de força ou efeito a mero veículo de um significado.
O autor depois expande para discutir a questão da traduzibilidade e das características intrínsecas a uma cultura que a fariam apta à tradução de culturas alheias para o ocidente cristão em relação as culturas indígenas e orientais. Estou simplificando um pouco. Mas há um exemplo que achei interessante. Ele fala da crença religiosa de uma tribo aborígene australiana segundo a qual seus deuses abandonaram sua terra há muito tempo e os objetos votivos e cerimoniais atribuídos a eles foram doados a daemons em forma de antropólogos brancos.
Fiquei pensando, com isso, na força do cristianismo como cultura tradutora de universos de pensamento e linguagem locais: um mundo moral que é capaz de transformar virtualmente qualquer realidade moral e religiosa local em categorias próprias—mesmo que negativamente. De um lado (positivo), está a conversão dos povos sobre os quais culturas cristãs exerceram hegemonia: modos de pensamento locais que, através das mediações e adaptações necessárias, foram absorvidos pelo universo cristão. De outro (negativo), o exemplo aborígene: culturas não-cristãs, que, através de um contato associado ao exercício de um poder de controle, absorveram parte das categorias cristãs (o antropólogo branco, p. ex.) para suas próprias crenças. Me pergunto se há algo no cristianismo, ou no monoteísmo, se quisermos, inerentemente “tradutor”—isto é, capaz de interpretar modos alheios e absorvê-los como seus—apartado do mero exercício de poder bélico dos povos europeus. Há algo no cristianismo, ou nas religiões monoteístas, que o torne especialmente apto a uma reprodução “memética” (no sentido do Dawkins—de uma unidade cultural em busca de sua propagação e manutenção). Ou isso é apenas consequência da dominação global de uma cultura europeia cristianizada?