Nota sobre o cinismo

Queria tentar fazer sentido da reação ao FORA-TEMERCORE—o conjunto de símbolos, a gramática, o léxico e os repertórios de ação da esquerda na era Temer e início da era Bolsonaro no Brasil. Mais especificamente, queria tentar entender o que exatamente nos permite adotar a postura cínica que, me parece, tem sido adotada por parte relevante da opinião pública (pelo menos gen z, pelo menos no Twitter); a postura que nos permite achar aquela constelação de práticas da esquerda da década passada mais ou menos ridícula.

Claro que, para falar num nível mais superficial, é normal achar cringe aquilo que a gente estava fazendo há 5 ou 10 anos. Se não por qualquer outro motivo, pelo menos porque estamos mais velhos e alegadamente mais espertos, o que nos permite olhar para o passado de cima, depois de descobrir as implicações daquilo que fazíamos, e também informados por uma distância temporal que faz com que a expressão sensível das nossas preferências da década passada apareçam como fora de moda. Em um primeiro momento, é isso, a graça com o fora-temercore é a graça com a calça skinny, não coincidentemente também parte daquele universo expressivo que nos serviu (à minha geração de agora trintagenários, ao menos) como mundo. A troça com um vocabulário que está fora de moda.

Mas além disso, me parece que o contexto que permite esse cinismo tem outros elementos além da distância temporal e a mudança de moda. Eu queria avançar três hipóteses sobre essa questão, sem que nenhuma tenha precedência sobre as outras, e talvez inclusive com considerável sobreposição entre elas.

A primeira é a hipótese da simples derrota e consequente derrocada dos movimentos sociais de esquerda; a segunda é a hipótese do lulismo como espécie de fiador de um senso de normalidade liberal (que permite que toda manifestação de cunho visivelmente político seja reprovada como excrescência idealista); e a terceira é a da vitória e prevalência de um certo bolsonarismo de baixa intensidade entre a gen z e jovens millenials. De novo: talvez isso sejam três nomes para a mesma coisa, mas vou tentar ir por partes.

Ascensão e queda

Os anos 2010 foram a época do ápice do acesso ao ensino superior público e/ou gratuito no Brasil. “Nunca na história desse país” etc. E era isso mesmo. Nunca houve tanto dinheiro para botar gente que nunca esteve dentro da universidade dentro da universidade. Também para oferecer possibilidades de futura para parcelas da população para quem o trabalho assalariado e a “viração” (sua forma precarizada) eram os únicos horizontes de expectativas. Não que os horizontes, hoje, sejam minimamente diferentes disso, mas pelo menos naquela época havia certa expectativa; e havia expectativa porque havia condições materiais de havê-las, digamos assim. Tinha muita gente fazendo coisa em modelos mais criativos.

Esse tanto de gente nova agora com alguma instrução fez com que, em primeiro lugar, as experiências de exclusão e opressão específicas às camadas mais suprimidas da população tivessem uma posição mais central na nossa esfera pública online e offline daquela época. O circuito de textão do Facebook era parte desse contexto, mas também as festas de rua, as associações de cunho artístico-cultural, os protestos, as aulas públicas, as ocupações etc. A hegemonia de uma sensibilidade branca e de classe média era disputada por sensibilidades novas, que agora possuíam também os instrumentos do debate.

Em segundo lugar, a apropriação de um léxico e uma gramática “acadêmicos” permitiu que essas experiências que entraram no debate público passassem a ser articuladas com uma riqueza maior. Com o perdão pela referência anacrônica e anatópica, mas estava em jogo aquilo que o coletivo feminista negro Combahee River descrevia em seu manifesto de 1977 (os anos 1970 nos EUA foram uma espécie de nossos anos 2010 nesse sentido): “De início, o que nos uniu foi uma posição combinando antirracismo e antissexismo. À medida que nos desenvolvemos politicamente, nos voltamos também ao heterossexismo e à opressão econômica sob o capitalismo”. Isto é, “à medida que nos desenvolvemos politicamente”, à medida que um vocabulário novo surgia para dar conta das experiências de desrespeito e sofrimento de grupos que passavam a integrar o debate, as lutas históricas das camadas suprimidas passava a ser compreendida como partes de um mesmo todo. Não mais apenas “abaixo o capitalismo”, mas também abaixo o racismo, o capacitismo, o etarismo, etc.

É a chacota com esse momento de desenvolvimento político que foram os anos 2010 que o cinismo me parece mais injusto. Principalmente porque esse movimento teve consequências longo prazo. Não é mais aceitável que um painel acadêmico que trate de “diversidade” seja composto por cinco homens brancos, por exemplo. Parece óbvio, mas já não foi. Hoje pelo menos há um vocabulário crítico disponível e amplamente adotado, resultado desse movimento dos anos 2010.

Os eventos que se sucederam (Dilma -> Temer -> Bolsonaro) significaram que o contexto que permitiu o florescimento desse novo vocabulário crítico simplesmente deixaram de existir. Tanto na universidade, um dos ambientes mais importantes desse momento, quanto fora dela, nos sindicatos (que foram extintos) e nas organizações adjacentes, que perderam momentum. Nesse sentido, não se trata propriamente de uma “falha” da esquerda fora-temer, mas de uma derrota. Isto é, os motivos da derrocada, me parece, foram mais externos do que internos. No fim, o resultado foi o sumiço desse caldeirão crítico. Estaríamos em uma espécie de diástole política depois de um momento de alta intensidade.

O lulismo como garante

A segunda hipótese diz respeito ao lulismo servir como uma espécie de fiador do sentimento de “normalidade”. Não acho que eu precise descrever em detalhes o que isso significa. Enquanto Temer e Bolsonaro conseguiam aglutinar em si toda catástrofe que acontecia no país (e, por ‘via negationis’, mobilizar a esquerda contra um inimigo comum), Lula tem o poder de não conseguir. As catástrofes continuam, obviamente, mas, tipo, quem liga? O pior já passou.

Essa segurança simbólica que o lulismo proporciona à classe média afluente e às camadas remediadas (que, desnecessário dizer, tem um aspecto “material”) torna qualquer articulação propriamente política de descontentamento social uma manifestação idealista, naive, ou própria às franjas do sistema político. Isto porque, uma vez reestabelecida a “normalidade” do sistema político institucional, ele é bastante para dar conta dos tipos de descontentamento que possam surgir. O que está alem disso é mera perfumaria.

Bolsonarismo de baixa intensidade

Talvez—e esta é a terceira hipótese—a vibe simplesmente tenha mudado (para pior). Depois das conquistas dos anos 2010, o ricochete político do bolsonarismo simplesmente chegou para ficar por mais tempo do que os quatro anos de governo. Não que a postura cínica seja própria do bolsonarismo cultural, mas o bolsonarismo pelo menos sabe fazer bom uso de uma sensibilidade que despreza qualquer relação sincera com o mundo.

Sei que esse é um vespeiro, mas acho que a própria ressurgência de uma cultura do corpo é reflexo desse bolsonarismo de baixa intensidade. A smartfitização da classe média “meio intelectual, meio de esquerda”, que agora está mais preocupada em ficar gostosa (e saudável!) é um flagrante dessa vibe shift dos anos 2020 em relação aos anos 2010. Na década passada era mais legal se aceitar do jeito que se é, hoje é mais legal ser o mais saudável possível. Nada contra saúde, obviamente, nem com ficar gostoso, mas acho que toda cultura do corpo tem em si um lado meio cruel, porque tenta trazer para o campo reflexivo da vontade racional e do interesse no aperfeiçoamento algo que está muito próximo de um campo “natural” e frequentemente pouco manipulável. Não sei se consigo elaborar melhor; vou deixar esta citação do Reinhard Lettau: “A Califórnia é tudo o que eu não gosto: tem muito sol, todo mundo é saudável e a saúde é considerada algo bonito. Já a saúde, para mim, não é nada bonita. Eu cresci na Alemanha nazista. Cresci doente e cansado da ‘saúde’”.

Claro que tem algo aparentemente muito promissor em terceirizar o pensamento para o desempenho físico e virar um himbo ou uma bimbo. Está todo mundo exausto, ultra-explorado e tendo que trabalhar todos os dias enquanto o mundo simplesmente acaba. De um ponto de vista individual, é perfeitamente compreensível essa postura derrotista e o recurso a um hedonismo consumista e auto-centrado. A crítica não é à escolha individual desta ou daquela preferência, mas ao fato de que a patologia do bolsonarismo se desenvolve justamente num caldo de exaustão, quando a postura cínica do hedonista auto-interessado parece muito mais convincente do que qualquer engajamento sincero com o mundo social (que em dez anos vai parecer brega de novo).

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