Nota sobre o céu

Querer ser um astronauta quando crescer é uma aspiração muito mais natural e muito mais autêntica para quem nasceu no interior e cresceu com a chance de olhar para o céu à noite e ver não só o céu, mas o universo. Olhar para cima em Três Coroas não é o mesmo tipo de atividade que olhar para cima em Porto Alegre, ou qualquer outra cidade grande, onde nem existe para cima, só pros lados e para frente. O mar de pontinhos no céu à noite que se vê no interior é uma propaganda de si mesmo.

Na condição de alguém que nasceu e cresceu em Três Coroas, onde o céu é enorme e só acaba quando começam os morros, não há nada exatamente místico em observar as estrelas. Mas há algo muito forte e eu diria terapêutico em voltar a fazer isso depois de crescido. Há uma intimidade que retomo com as estrelas quando volto a vê-las depois de muito tempo. Elas permanecem onde as deixei. E quando volto reagem como se nunca as tivesse deixado. São como os bonequinhos que eu arrumava num cenário elaborado antes de brincar e acabava nunca brincando — o prazer era deixá-los lá. Com a diferença de que as estrelas se arranjam num cenário muito mais elaborado, e que eu sempre acreditei, mesmo criança, muito mais nelas do que nos bonequinhos.

A cabeça vira um caldeirão depois de alguns minutos olhando para o céu à noite. Os olhos vão se acostumando com a luz baixa do ambiente ao redor — não há ninguém de pé de madrugada, nenhuma janela iluminada, as únicas luzes mais próximas são das lâmpadas incandescentes dos postes — e à medida que o escuro vai deixando de ser um problema, a paisagem intrincada do céu vai se formando com mais clareza. Para onde se olhe há pontinhos luminosos, e aos poucos vai aparecendo, no meio do céu, um feixe onde as estrelas parecem se aglomerar. É um dos braços da galáxia. Até estranho pensar que estou vendo, só de olhar para cima e com os meus próprios olhos, algo tão distante e tão abstrato — quase metafísico — quanto uma galáxia. A Via Láctea existe e fica no meu pátio.

Meus momentos íntimos com as estrelas são raros, e normalmente acontecem, curiosamente, no Natal. É quando aproveito para fugir de Porto Alegre e ficar uns dias sozinho em Três Coroas, enquanto o resto da família está viajando. Nesta época, em que tenho a casa só para mim e para o universo, fico mais suscetível a prestar atenção naquilo que ignoro durante o resto do ano, quando sou constantemente bombardeado por informação. É preciso não ter compromissos nem pressa para observar as estrelas sem pesar. Não que elas se importem ou fiquem magoadas, só que olhar para o céu é um momento de vulnerabilidade e sinceridade. Um momento em que se fica desarmado e em que não se tem a ironia ou nenhuma outra figura retórica para se defender, porque a relação que se estabelece com os milhões de pontinhos que vemos piscar não é de ordem lógica ou racional. Talvez seja daquela mesma ordem da relação entre o mar e quem olha para o mar, irredutível a qualquer tentativa de descrição. Isso ajuda a entender o momento: quando estou sozinho, não preciso explicar o que estou fazendo, até porque nem teria como.

Sou acompanhado pelo coaxar dos vários sapos, de um grilo que canta aqui e ali e de uma coruja e outros pássaros que piam isolados. A riqueza da experiência tem a ver com isso — estar do lado do mais terreno e local que existe, a vida na terra, ao mesmo tempo que olho para o mais distante e, literalmente, universal: fenômenos que estão acontecendo ou já aconteceram a milhões de anos-luz e milhares de anos de distância. E ao mesmo tempo o feitiço que causa pensar que essa distância inconcebível é ainda muito pequena se comparada à distância do que observo àquilo que nem consigo enxergar.

Fico pensando em abrir um Observatório do Céu à Noite, que, diferente dos outros observatórios astronômicos que existem por aí, não teria nenhum fim científico e nem serviria para aumentar o conhecimento da humanidade. Quem fizesse parte dele não precisaria saber nada de céu ou de astronomia. A sede seria em cada cidade do interior. Quanto mais bonito o céu naquela cidade, mais importante a sede. Os membros compartilhariam do gosto por sentar na grama de madrugada, do lado dos sapos, molhar a bermuda no orvalho, e se sentir uma criança olhando para um brinquedo novo. Os temas do Observatório seriam tantos quantos são os pontos no céu e a relação entre eles. Perto das Três Marias, quando observo com o binóculo, há uma região onde parece que há fumaça e alguma forma de luz misteriosa— parece uma caverna. Do outro lado, passa um ponto de luz percorrendo o céu na mesma velocidade em que uma formiga percorre o vinco no piso quando olho para ela de pé. Outro ponto tem a luz mais avermelhada (e às vezes pisca), já outro, quando vejo pelo binóculo, deixa de ser um ponto e vira uma bolinha. Será um planeta? Ou uma estrela mais próxima? São questões para o Observatório do Céu à Noite.

É natural que se perca a noção de tempo depois de transcorrida alguma porção dele. Não sei quanto tempo fiquei na rua, no meio do pátio, olhando para cima. O universo não funciona como o mundo humano, e sua temporalidade é a do infinito. E em relação ao infinito todos os outros tempos são igualmente distantes.

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(Escrevi este texto em 2016 e acho que só tinha postado no Facebook).

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