Nota sobre literatura regional

“The sun is still high up”. Hoje vim para o quinto andar do prédio onde trabalho, ler um pouco do livro que estou lendo, In the Heart of the Heart of the Country, do William Gass. O quinto andar tem uma vista melhor do que a do terceiro, onde fica o meu cubículo e o departamento de filosofia, e janelas maiores que dão para os outros prédios da universidade e para o lago.

De onde estou sentado vejo bem na minha frente um friso no alto da parede de pedra da biblioteca, onde está escrito “Hegel” em baixo-relevo. Do lado esquerdo do Hegel, os nomes “Plato” e “Duns Scotus”. À direita, “Locke” e “Kierkeg—”. O “—aard” está coberto por uma árvore.

Faz um dia bonito de inverno, que combina com o livro do Gass. São pouco mais de duas horas da tarde, e o sol está ainda “high up in the sky”.

Foi essa frase que me deixou pensando. A frase me ocorreu em inglês. Pensei no sol estando “high up”, não “alto” ou “alto no céu”, como talvez eu tentaria traduzi-la. Não era um “sol bem alto no céu”, mas um “sun high up in the sky”. Sou o primeiro a apontar os anglicismos nos textos que leio ou que reviso. Principalmente em traduções. Mas não sei se eu conseguiria achar uma alternativa melhor do que esta, melhor do que “o sol ainda está alto no céu”, que é precária, e não foi o que eu pensei.

O sentido da frase talvez seja próprio demais a uma experiência articulada no inverno de Illinois, e portanto, ao menos em algum sentido muito específico, necessariamente exprimível em inglês. O sol ainda estar “high up” significa que eu vejo o sol, o que não é tão corriqueiro no inverno. Significa também que o solstício de inverno já passou, e que agora os dias começam a ficar mais compridos, embora o frio permaneça conosco por ainda um bom tempo.

Olhando em retrospecto (um “specto” de algo que aconteceu há muito pouco tempo), talvez não tenha sido uma completa coincidência que esse pensamento tenha me ocorrido enquanto eu lia—ou, melhor, enquanto não lia, mas olhava pela janela enquanto segurava nas mãos—o In the Heart of the Heart of the Country. A linguagem do livro é própria dos modos de falar de um interior branco e pobre dos Estados Unidos. Uma espécie de literatura regional, embora o gênero tenha adquirido uma qualidade de gênero nacional por aqui.

Fiquei pensando sobre o meu uso de anglicismos. Nunca gostei muito deles, ou talvez ainda não goste, por achá-los uma solução ou preguiçosa, por falta de vontade de procurar palavras ou expressões melhores, ou presunçosa, numa espécie de tentativa goffmaniana de causar no público ou no leitor a impressão de que o autor possui algum tipo de capital cultural valioso—conhecer aspectos “intraduzíveis” de uma língua.

A minha pergunta para mim mesmo, eu acho, é sobre a minha própria literatura, ou escritura, regional. Qual é a minha região? Me sinto em casa em Três Coroas, e com o vocabulário de Três Coroas, com os problemas de lá. Em Porto Alegre também, por motivos diferentes mas de uma maneira muito parecida. E depois, me sinto um pouco em casa nesse espaço internacional de circulação de ideias que é a língua inglesa. Agora esse espaço é aqui em Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, mas já foi em outros lugares. E escrever a partir de um vocabulário e sobre questões de Três Coroas ou Porto Alegre, em português, me parece aceitável, justificável, correto, enquanto não me sinto autorizado a fazer o mesmo a partir desse terceiro espaço.

E acho que “terceiro espaço” é um nome bom, porque não se trata nem do primeiro espaço, privado, imediato, familiar, nem de um segundo espaço, público, compartilhado, profissional, mas de uma terceira coisa. (Quase escrevi ‘de uma secret third thing’, mas não me senti autorizado, ou me senti idiota, não sei).

A dificuldade está em me sentir autorizado a escrever em uma língua e com uma linguagem que sejam “minhas”, escrever a partir de um lugar “regionalmente” situado, mas sem soar pedante, ou ridículo, ou preguiçoso por me apropriar de uma “terceira” região. Talvez seja uma dificuldade merecida. Não sei. Ou talvez também seja esse o conflito de todo mundo que quer escrever de um ponto de vista “regional”.

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