Terminei o último artigo do semestre, para a disciplina de filosofia prática kantiana. Isso no meio da semana mais difícil do ano e provavelmente uma das mais difíceis que já tive. A sensação, porém, de escrever sobre Kant, foi um tanto libertadora. Meu texto foi sobre o conflito de fundamentos na Metafísica dos Costumes. Kant diz que deveres (regras) não conflitam com outros deveres, nem obrigações (atos) conflitam com outras obrigações. O que pode entrar em conflito são fundamentos de obrigações. Fundamentos são quando você pega um dever e recheia ele com fatos (sobre a humanidade, sobre o mundo), e então descobre obrigações. Enfim, não vou entrar nos detalhes, mas minha tese é de que, não só entre deveres éticos, mas também entre deveres jurídicos (na distinção kantiana) há deveres que não possuem força coercitiva imediata, isto é, que requerem ou que você forneça máximas mais específicas, ou que você os sopese em relação aos fatos que estão na sua frente.
A tese não importa. O que queria dizer é que me senti tão livre escrevendo sobre esse assunto, sobre um tema exclusivamente especulativo e descolado da realidade. Como estou mais na teoria social do que na filosofia propriamente — e me veja mais como alguém da teoria do que alguém da filosofia — normalmente aquilo sobre o qual escrevo tem alguma preocupação mais ou menos concreta. Não necessariamente boba, naturalista, mas uma preocupação, por exemplo, em tratar de uma realidade social que está “aí”, que se dá historicamente. Talvez seja um materialismo meio vulgar (amo), mas o ponto é que é muito distinto de escrever qualquer coisa *apenas* especulativa, sem nenhum aspecto historicamente determinado.
O que queria dizer é que é mais confortável escrever sobre coisas que não “existem” (no sentido hegeliano). Enquanto escrevia, fiquei pensando que essa é praticamente forma ideal, ou típica, da filosofia como se estabeleceu, que é o pensamento descolado da preocupação histórica, situada. O pensamento aristocrata por excelência. Autorreferencial, infinito, a-histórico, confortável. E isso não é o oposto de pobre. Ninguém ganha dinheiro fazendo filosofia e a maioria é precarizado. Mas a aristocracia, como diz o André Leon Talley, é um estado de espírito. Você pode ser pobre e aristocrático. Isso me parece obrigar, por exemplo, qualquer um que trabalhe num departamento de filosofia a se posicionar CONTRA as tentativas de “abrir” a universidade para verem o que se faz dentro dela. O único motivo pelo qual ainda há algum departamento ou outro de filosofia recebendo dinheiro público no Brasil é porque o que é feito dentro deles é desconhecido por quem tá fora. Se descobrirem, já era. (Já está sendo, na verdade).