Nota sobre Kafka e a burocracia

David Foster Wallace tem um texto chamado “Some Remarks on Kafka’s Funniness from Which Probably Not Enough Has Been Removed”, que aparece em Consider the Lobster e cujo título é parcialmente autoexplicativo. A tese de DFW é que Kafka escreve humor. Não só humor – seus textos não são propriamente cômicos – mas o humor está contido no texto. Além de esclarecer umas confusões pessoais a respeito da minha primeira leitura de A Metamorfose (em que eu não tinha entendido que Gregor Samsa se transformava em um inseto), o texto me fez anotar algumas coisas sobre possíveis motivos para Kafka ser o autor que conseguiu transpor a estética da burocracia para uma forma literária sem ruídos. A obra de arte que é O Processo, por exemplo, sobretudo a parábola Diante da Lei, é uma representação (ou mesmo apresentação) fiel ao funcionamento efetivo do aparelho burocrático, que obedece da mesma forma às estruturas de obra (segundo Heidegger, nas formas de transfiguração da verdade em obra se encontram, além da arte e da atividade do pensamento, a criação do Estado). A burocracia é tão obra quanto O Processo, esta se valendo daquela para sua composição homóloga. Kafka obedece a uma mesma ou semelhante frequência de elipses semióticas que a do espaço da burocracia. A qualidade do conto em omitir “informações” para que elas floresçam organicamente na leitora (técnica conhecida em inglês como exformation) é semelhante à omissão institucional pela burocracia dos códigos necessários para operá-la. O texto com sentido ambíguo em Kafka, com seus períodos “compactados”, omite detalhes importantes, proposital e ostensivamente. Uma exegese textual faria parecer necessário o aporte de elementos extrínsecos, mas de difícil ou impossível acesso pela intérprete. A burocracia, com regulamentos, portarias, instruções normativas e memorandos tendentes ao infinito, da mesma forma atravanca sua operação por quem não conhece os códigos ou não se comporta como se conhecesse (como fazer os requerimentos, onde protocolar os pedidos, quantas vias entregar e onde? etc.). Assim como a “desburocratização da burocracia” é uma impossibilidade lógica, seu extermínio, o mesmo se pode dizer da “explicação” dos parágrafos atulhados de significado de Kafka. Se a burocracia é justamente o infinito circular de procedimentos, Kafka sobre a burocracia é também compactação de procedimentos interpretativos à extensão. Não haveria O Processo sem o todo humor-crítica-drama; não há burocracia sem burocracia.

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