Tive um fim de semana mais ou menos temático de jardinagem. Li O tempo da paisagem, do Rancière, vi o Master Gardener, do Paul Schrader, e fui no museu para ver outra coisa, mas acabei vendo também a seção de pintura do século XVIII, quando as figuras humanas vão ficando menores e vão dando lugar às as paisagens atrás delas, que vão ficando grandes e grandiosas.
Comprei o Tempo da paisagem do Rancière faz um ano, mas só li agora. Quando comprei, fiquei pensando naquela frase do Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, e se existiria alguma coisa como um campo de estudos críticos da jardinagem. Se esse campo existe, o livro do Rancière é uma espécie de representante. O livro trata da “entrada” da arte da jardinagem no panteão das artes liberais no século XVIII, junto com a pintura, a música, etc. “Liberal”, como aponta o Rancière, adquire naquele século também o sentido de um tipo de observação do mundo e da natureza dissociada de um juízo de valor moral. É o que culminará, com Kant, na ideia de “desinteresse” do juízo de gosto. A arte é “liberal”, agora, também no sentido de que a beleza pode ser aferida independentemente do contexto de sua produção ou execução.
O objeto do Rancière no livro é a pintura de paisagem e a arte da jardinagem, que ele mostra terem uma relação de desenvolvimento íntima e codependente. Em certos momentos, a pintura de paisagem tem na natureza organizada da jardinagem sua fonte de referência; em outros, é a jardinagem que se inspira no princípio de organização da multiplicidade na unidade a que a pintura de paisagem obedece. Esse processo de desenvolvimento e emancipação da jardinagem se cruza com processos políticos como o que levou à Revolução na França: para alguns ingleses, a organização geométrica e as linhas retas da jardinagem francesa deveriam servir também à Inglaterra como modelo de organização do espaço visível. Para outros, a rigidez dos ângulos retos e a preferência por árvores que produziam menos sombras significava a rejeição de uma natureza prístina, capaz de, ao mesmo tempo, agradar o olhar do observador e saciar a sede e oferecer sombra ao trabalhador cansado.
Categorias próprias à arte da jardinagem entravam, com isso, em um registro político. Rancière se reporta a Burke para apontar para uma certa a literalização das metáforas naturais: “As gradações das ordens sociais se tornam gradações das luzes sobre uma tela. A dissimulação da desigualdade na aparência da comunidade é tratada como a dissimulação dos extremos de um lago ou da origem de uma queda d’água que dá uma extensão imaginária a uma paisagem delimitada” (108). A montanha aparecia como o símbolo da frieza distante da razão pura; a paisagem construída e as casas de campanha, representação da organização comunitária do mundo.
Além de ver como uma linguagem própria à arte da jardinagem serve de vocabulário político para dar conta das revoluções do século XVIII, acho interessante o ponto de que as categorias estéticas da jardinagem acabaram sendo eclipsadas por aquelas próprias, principalmente, às artes plásticas. Com Kant, a paisagem se torna par à pintura; porém, o vocabulário estético que se desenvolveu para dar conta da experiência de observar uma paisagem, como, nos exemplos de Rancière, o “pitoresco” e o “grandioso”, vão desaparecendo em prol dos extremos “belo” e “sublime”, que se canonizam na história da estética como os limites do juízo estético. O “belo” normalmente aplicado para coisas pequenas, arredondadas e rebuscadas; o “sublime” para as coisas grandes, angulosas e brutas. As categorias intermediárias, que se prestariam melhor a cruzar a ponte do juízo de gosto com o comentário social, vão sumindo do mapa. Com Hegel, finalmente, a arte da jardinagem receberia sua última pá de cal, relegada à mera natureza, sobre a qual a disciplina da estética—preocupada apenas com as criações do espírito humano—deve se calar. Assim como a liberdade social está no Estado, não na natureza (como queria Rousseau), a liberdade artística está, para Hegel, naquilo que a mente humana produziu.
O paradoxo da jardinagem está em que ela não é “apenas” um produto da natureza. Enquanto o princípio mimético das artes representativas exigia que o artista “imitasse” a natureza; com a jardinagem aquilo que era objeto vira também meio: o processo de produção e organização em um conjunto tem como elementos a própria natureza, embora organizados por uma vontade humana. Mas se o meio muda, muda também, com a arte dos jardins, o artista. Não é apenas o homem o artista; a natureza, de certa forma, também se mostra em sua capacidade criativa. É ela que trabalha, que cresce os galhos das árvores, que desenha as curvas dos cursos d’água, que alonga as sombras no inverno e as encurta no verão.
Sendo este o caso, a distinção antiga entre essência e aparência se põe de uma forma mais complicada. Não é mais a natureza que possui algo de verdadeiro que pode ser sujeito a réplica e imitação. É a natureza em si que se torna aparência; a própria aparência da natureza é, ao mesmo tempo, real e artificial. A jardinagem confunde as distinções entre modelo e cópia, essência e aparência, obra e artista, e mesmo a distinção entre arte e não-arte. Com isso, inaugura uma espécie de regime estético próprio, não “apenas” representativo, sujeito ao princípio da imitação, mas também não “apenas” estético, já que certa representação, em se tratando da natureza enquanto meio, parece inevitável.
A radicalidade da jardinagem está em que, por definição, ela opera fora dos regimes tradicionais da arte. O uso de um vocabulário originário da jardinagem para se reportar às dinâmicas das revoluções sociais se mostraria, portanto, especialmente apto a capturar uma sensibilidade política que se inaugura, segundo o Rancière, ao redor do fim do século XVIII, que associaria a política à estética (no sentido de que a questão política por excelência é aquela sobre a partilha do campo do “sensível”). Sendo assim, parece incorreto atribuir à jardinagem a ausência de politicidade, que a frase sobre a luta de classes sugere. Por se distanciar ao mesmo tempo das amarras da mera representação e da completa independência do juízo de gosto, a jardinagem seria, pelo contrário, a mais política das artes.