A coisa que tem me incomodado recentemente — eu acho que hoje consegui entender melhor, ou formular um pouco — é que eu me sinto meio falcatrua me aproveitando do sistema universitário como forma de financiar meu diletantismo. Não tenho muito compromisso com a filosofia nem muitas pretensões de especialidade, de dominar campo, área, tópico, nem de sistematizar meus interesses em algo coerente. Me sinto sempre meio mal quando reclamam de alguém que fala de algo que não é sua área de expertise, porque sinto que não tenho nenhuma área de expertise, apenas várias áreas de interesse. E gosto de caminhar em cima delas todas.
O ponto é que isso me deixa um pouco culpado, porque faço isso de dentro da universidade. E consigo pensar em pelo menos duas formas em que essa culpa, ou essa sensação de falcatruagem, aparece. Uma está em eu viver bancado por instituições que esperam que eu faça um bom trabalho, para o qual eu me dispus etc., na condição de alguém mais ou menos especialista, ou em condição de especialização etc. E sinto que isso entra em conflito, em algum nível, com a forma como faço esse trabalho, a forma com que cumpro minhas obrigações, digamos, profissionais: fazendo o mínimo suficiente para que eu consiga me mantar nesse jogo, para que a falcatruagem seja autossustentável. A universidade aparece apenas como um campo que eu aprendi a navegar (poderia ter sido qualquer outro) para financiar meu tempo gasto com diletantismo descomprometido. Não é que eu não trabalhe, não publique artigos etc. (embora não tenha publicado nada faz algum tempo). É que eu só trabalho aquilo que me parece o mínimo para manter a roda girando. Meu trabalho não é uma grande coisa nem na minha vida nem no campo, e eu não faço nada para que ele se torne (pelo contrário!).
A segunda forma em que a culpa se manifesta é quando me sinto colocado numa posição de autoridade sobre qualquer assunto. Totalmente decorrente da minha insegurança com a posição de especialista, mas sinto que quando sou pressionado a responder sobre, sei lá, embates filosóficos, estou sempre sendo meio falso defendendo um lado, ou um argumento sobre o outro. Isso porque para mim não importa muito. Não consigo me engajar tão profundamente quanto colegas e amigos na defesa dos seus autores, das suas posições filosóficas. Para mim meio que tanto faz? Aí quando me colocam na posição de autoridade (veja bem, pode ser uma pequeníssima autoridade, mas mesmo assim uma autoridade), me sinto meio o Elton John vestido de Pato Donald no Central Park, falando “quack!”. Isto é: me sinto um pato.
Eu sei que tem um cinismo e um niilismo potencialmente doentios aqui, que eu acho que mantenho domados. (A ver).
Um pedaço da sensação é de não ter encontrado a profissão certa (herdeiro, aposentado?). Sempre volta o questionamento: e se eu tivesse aceitado aquela oferta para ser trainee numa firma de consultoria e auditoria na época da graduação? Seria melhor?
E o que racionalmente explica um pouco (mas quem dera explicar racionalmente esse tipo de questão as resolvesse) é que talvez todo mundo se sinta meio assim. Todo mundo que está na universidade, ao menos. A gente não trabalha o mínimo possível para sustentar nosso tempo livre mesmo? Não é assim que funciona? Penso sempre que essa é a situação de todo artista que encontrou trabalho como professor por falta de financiamento à arte. É uma história tão comum, a pessoa diretora, pintora, ilustradora, escritora etc. que não consegue viver disso e que vai pra universidade. E também um pouco da história dos militantes de esquerda dos anos 1960 (aí num contexto mais americano), que depois foram todos para as universidades. Mas parece que essas duas categorias, artistas e militantes, têm mais forro, mais “stuff”, mais substância para compor ensino e pesquisa. E também têm como trabalhar em outra coisa (mesmo que hipoteticamente). Não é como se o diletante pudesse viver profissionalmente de diletantismo: passando a tarde no YouTube ouvindo Schlager polonês, organizando o programa de uma escola de baixos estudos fictícia, escrevendo crítica de álbum do Shakatak e do Gigi D’Agostino, fazendo listas de palavras engraçadas. Então ele necessariamente vai ter que conseguir um emprego, ou morar na casa dos pais. E conseguir um emprego talvez ainda seja o melhor dos dois.