Não se dá tchau no Facebook

Faltam três semanas, exatamente, para o prazo final da entrega da minha monografia, de título “Direito como Reconhecimento em Hegel”. Dos três capítulos previstos, um está pronto. Os outros dois estão esquematizados e com material semi-organizado. Só me resta escrever.

Já que faltam três semanas, exatamente, para que se esgote o prazo de entrega (e considerando que eu tenho menos que isso para acabar, já que meu orientador tem que ver o trabalho antes dele ser entregue), decidi desativar o Facebook temporariamente, para poder sobrar mais tempo para eu fazer o trabalho. Faz dois dias que eu desativei, e configurei para reativar só no dia 24 de maio, minha deadline. É claro que o plano não está funcionando exatamente como planejado por um motivo muito simples que é o fato de o Facebook não ser o único empecilho no caminho entre eu e minha monografia pronta. Tem a procrastinação pura e simples, que não respeita limites tecnológicos. Se eu estivesse sem absolutamente nada senão minha monografia para escrever, trancado numa cabana na floresta, sem conexão de dados, chances há de que eu ainda não conseguiria escrever; é muito fácil achar distração. É como a ideia do Mestre: toda vez que se corta a cabeça de um Mestre, surgem mais dois, mais fortes. (Tem um personagem da mitologia grega que funciona assim, mas não consigo me lembrar).

Como eu não abdiquei de toda a minha vida ao largar o Facebook (ou pelo menos esse não era meu objetivo, caso tal destino seja inevitável, como alguns diriam), me curvei finalmente ao WhatsApp. Instalei o programa no celular e agora tenho como conversar com as pessoas com quem tenho que conversar, sobretudo meus colegas de aula, pra saber sobre provas, trabalhos etc.

Minha tentativa de me ‘desligar’ da vida virtual do Facebook imediatamente me deu espaço para alternativas autoenganadoramente menos lesivas, como o WhatsApp (e, vejam só, este blog, em que eu não escrevia havia horas). Corta-se uma distração, aparecem duas outras, mais fortes.

Se o processo de feitura da minha monografia tem me ensinado alguma coisa, é que é preciso estar sozinho e em paz para escrever (alguns dizem que isso é balela e que eu só ainda não aprendi a escrever mesmo sem ter vontade, mas, se for balela, bom, eu realmente não cheguei no ponto ideal de auto-tortura). E estar sozinho me parece cada vez mais difícil. Por mais solitária que uma pessoa seja, e eu me considero bastante solitário, sempre se está conectado. E tentativas de desconexão sempre são parciais – depois de um mundo de hiper-conexão, é impossível, conceitualmente, retornar a um momento histórico de individualidade autêntica. É impossível negar a etapa histórica que foi a comunicação de massa, microprocessadores, internet das coisas etc.

Os discursos sobre a sociedade da hiper-conexão, prestem atenção, chamam nossa atenção tanto para o hiperdesenvolvimento das “redes (sociais)”, da conexão global entre tudo e todos, da supressão do espaço como meio da relação, da experiência da subjetividade, da existência inter-comunicativa etc., quanto para como nos tornamos cada vez mais monádicos, restritos à nossa individualidade, avessos ao outro, à intersubjetividade, à experiência da luta por reconhecimento, em termos bem hegelianos. Qual é verdadeiro? Marchamos em direção à verdadeira comunidade global, integrada organicamente? Ou nos dirigimos à uma somatória de indivíduos individualizados e certos apenas de si mesmos? Ou um ou outro?

Quando eu assistia, ontem, via YouTube, a uma palestra do Prof. Peter Pál Pelbart, falando sobre o viver só, me convenci de que a resposta para esse impasse é eminentemente dialética. Individualismo radical ou hiper-conexão total? Nenhum. Ou então, ambos. Ora, a experiência do estar-com-outro, por um lado, nunca é uma completa troca, uma relação (“Il n’y a pas de rapport”, talvez pudéssemos dizer, indo mais fundo que Lacan). A convivência está sempre sob observação da pura individualidade. A relação deixa de ser outra, exterior ou superior aos indivíduos que dela fazem parte, e se torna uma forma de relação a partir de si (do self ao outro). O sujeito da relação não é mais o “nós”, mas tão-somente o “eu”. Não é apenas o caso de que o “caminho para a individualidade passa pelo outro”, mas do outro ser apenas um acidente na minha relação comigo mesmo. O que é a cena de dois amigos conversando na mesa de um bar, cada um empunhando seu celular, através do qual conversam cada qual com outros amigos? A plena disposição do meu tempo, epítome da individualidade, é corporificada no celular, que é sempre presente. Não tenho mais certeza de que meu interlocutor da mesa de bar está realmente me ouvindo.

Ao mesmo tempo, percebam, o exercício do poder da individualidade (mexer no celular, por exemplo), se dá através de um diálogo, de uma interação com o outro, a ponto de (e este é o outro lado da moeda) a experiência do estar-sozinho acabar se arrefecendo, evaporando, sumindo. Se minha individualidade é exercida sobretudo através do poder de estar com outro a despeito do outro (a conversa via celular, no bar, com o amigo na frente), minha individualidade é minada. Minhas tentativas de estar sozinho (necessárias para uma diversidade de coisas – escrever uma monografia, por exemplo) acabam sendo frustradas pelo contato. Não consigo estar suficientemente sozinho. Ao mesmo tempo que todo o estado de coisas me larga à individualidade, esse largar não é completo, não é total, acabado. Nas minhas tentativas de estar só, sobra sempre um frangalho da trouxa que me junta dia-e-noite ao outro. Como se debruçado sobre meu ombro, o outro (sujeito-objeto da conexão), está sempre me vigiando, me observando, me chamando. E essa não é nenhuma ideia metafísica, é a realidade. Maiores exemplos são os bate-papos do Facebook, ou do WhatsApp. Mesmo o outro não estando comigo ao vivo, está sempre ali compactado no computador ou no celular, disponível.

Um belo exemplo da disponibilidade, sobre o qual conversei já com alguns amigos, é o abandono da prática de dar ‘tchau’ nas conversas online. No tempo do MSN (da ainda Internet 2.0), uma conversa era um evento. Olhando em retrospecto – o que, é óbvio, pode causar alguma distorção – me lembro das conversas do MSN como se fossem ligações. Depois de chegar em casa, o programa era conversar com pessoas pelo MSN. No final da noite, ou da tarde, ou da manhã, os partícipes de despediam: “Tchau”, “tchau”. Existia então um pingo no i, um ponto final, um “fim”, quer dizer, uma demonstração de que a partir daquele momento o outro não estaria mais disponível para mim, assim como eu não estaria mais disponível para o outro.

No Facebook, por outro lado, não se dá tchau. A pretensão é de que a conversa se arraste para sempre. Mais do que suprimir a barreira do espaço, o chat do Facebook (e do WhatsApp, estou descobrindo) pretende também abolir a barreira do tempo. Não é mais problema se deixa-se uma mensagem para o outro às cinco horas da tarde e ela só é respondida às três da manhã. Primeiro porque o outro pode estar acordado a qualquer momento do dia e da noite – a noite não é mais o tempo para descanso, mas uma buffer zone que pode ser aproveitada para trabalhar mais –, segundo porque a noção de tempo de uma conversa do Facebook é ressignificada. Não respeita o tempo cronológico, “pré-contemporâneo”, mas impõe sua própria temporalidade, ou sua própria cronologia, “atemporal” e atópica.

É nessa realidade que percebemos nosso imobilismo em relação à vida, às coisas, ao mundo. A realidade existente nos joga para uma condição, para um lugar no qual não estamos acostumados a estar. Nem “aqui”, nem “lá”. Além de ser impossível estar realmente com o outro, é cada vez mais difícil estar realmente sozinho.

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