No início do ano, comecei a postar no Bluesky, depois do fim de cada mês, uma lista dos livros que li no período, junto com algum comentário breve sobre cada um deles.
Durante os primeiros meses do ano, me senti limitado no que eu me autorizava a ler. Com uma tese a terminar, sentia a sensação (bastante comum e reportada por quem já teve que escrever uma tese) de que qualquer leitura que não seja relacionada à tese é um divertimento não só desnecessário, mas também contraproducente, já que estaria tirando tempo que eu poderia estar dedicando a escrever a tese. Claro que isso não necessariamente fazia com que eu despendesse mais tempo lendo coisas que deveria estar lendo, apenas me limitava a leitura de todo o resto.
Enfim. Como estou tentando migrar, progressivamente, de volta para o meu blog—que agora está todo bonito, como vocês podem ver, e sobre o qual um dia ainda devo escrever mais detidamente—resolvi trazer este relatório de leituras para cá também.
Eu tinha esquecido de postar os lidos de abril, então segue a edição conjunta abril e maio.
Carlo Ginzburg, Nevertheless: Machiavelli, Pascal
Sou grande fã do Ginzburg e de sua micro-história. Em 2022, tive a sorte de assistir a uma palestra dele no Centre Marc Bloch. Não lembro qual era o tema declarado, mas boa parte foi sobre os livros que ele acha no Abebooks.
Nevertheless é a tradução de “nondimanco”, “entretanto”, expressão italiana usada por Maquiavel e que ilumina, para o Ginzburg, seu método (do Maquiavel). Maquiavel era interessado mais na exceção do que na regra, no que vinha depois do “entretanto”, numa tradição que aludiria, segundo o Ginzburg, à casuística medieval.
Dos vários capítulos, o que mais me interessou foi o sobre a relação de Maquiavel com Michelangelo (que, segundo o Ginzburg, há evidências de terem se encontrado ao menos uma vez, além de, principalmente, terem servido de influência um ao outro). A evidência principal da influência de O Príncipe sobre Michelangelo estaria na estátua que Michelangelo fizera de Lorenzo de’ Medici, duque de Urbino (para quem Maquiavel dedicou O Príncipe). Essa estátua, que ilustra a capa do livro de Ginzburg,
“inclui um detalhe—o bloco de mármore polido com a cabeça de um animal híbrido—que aludia a duas passagens específicas de O Príncipe (capítulo 18, capítulo 26). Explicar essas referências como o resultado do mero acaso seria difícil. Parece mais promissor interpretá-lo como um eco, seja de uma leitura de O Príncipe (que Michelangelo pode ter recebido em cópia de Biagio Buonaccorsi) ou de conversas com o próprio Maquiavel”. (p. 105)
Clarice Lispector, Daydream and Drunkenness of a Young Lady
Achei essa tradução chata demais. Livro de origem bem aleatória, aliás—ganhei num bar de uma guria que acabávamos de conhecer e que gostava de Clarice Lispector. Estava com o livro na bolsa e me deu porque falei que nunca tinha lido esse.
Louisa Yousfi, In Defense of Barbarism: Non-Whites Against the Empire
Uma intervenção sobre o racismo no contexto francês, mais especificamente sobre a relação entre o centro e as periferias de Paris, entre a elite branca de Paris intramuros e os imigrantes—principalmente maghrebinos—das banlieues. O livro é uma espécie de manifesto anti-assimilação, uma defesa, como diz o título, da “barbárie” à qual os imigrantes africanos na França são normalmente associados. A proposta do livro é de ressignificar a “barbárie” como uma espécie de autenticidade perdida pelos imigrantes, principalmente os de segunda ou terceira geração, que já não teriam acesso, por exemplo, nem a sua língua de origem. Há uma tentativa interessante de apontar para um processo de coisificação do imigrante árabe e norte-africano, que aglutina traços como uma vilania inata, uma belicosidade natural, uma violência contra mulheres, gays, judeus, etc.
Achei o livro meio fraquinho. Parece uma série de notas que poderiam ter sido mais trabalhadas. O livro levanta contradições muito interessantes, mas não se debruça muito sobre elas. Para mim o melhor exemplo é o da história de Mehdi Meklat. Segundo Yousfi, Meklat se tornou, para o establishment parisiense, uma espécie de porta-voz da periferia. Era um escritor de origem árabe que se tornou um interlocutor da mídia parisiense e adquiriu uma aura de embaixador da periferia, tendo reuniões com o presidente, empresários, etc. Em 2017, porém, descobriu-se que Meklat era o autor, sob o pseudônimo de Marcelin Deschamps, de uma dúzia de tuítes antissemitas, racistas, homofóbicos e misóginos. Imediatamente, Meklat foi abandonado pelo establishment com o qual tinha se amigado, e o movimento de aproximação agora se tornava um movimento de rechaço, pelo poder público e pela sociedade civil, de qualquer associação com ele. Meklat passava de bárbaro para bom moço e para bárbaro de novo. A história me parece um prato cheio para discutir as contradições da barbárie à qual Yousfi se reporta, mas aparece no livro quase em formato de relatório, sem muita exploração das contradições tanto da assimilação quanto da exotização. O livro termina num tom morno, com Yousfi discutindo como, por mais que ela advogue em defesa da barbárie, esse “retorno” ainda é muito difícil uma vez que você foi formado, por exemplo, como ela, pelo sistema educacional francês.
Tati Bernardi, A Boba da Corte
Sobre este, já me posicionei em tuítes. Acho que estou entre a minoria que não achou o livro assim tão ruim, tão condenável, tão ridículo. Se o livro faz uma coisa, é ilustrar como até quem cruza de uma classe média alta para uma classe média alta-alta (no Brasil, ambos estratos sendo parte dos, sei lá, 3% mais ricos), mesmo entre as fatias mais estreitas na hierarquia de classes brasileira, há ansiedade de classe.
Acho que quem aponta coisas do tipo “mas ela saiu de Taquatema para morar em Jardim Mattarazzo, são praticamente o mesmo bairro” (nomes fictícios, não faço ideia de nome de bairro em São Paulo) está pressupondo que quem tem dinheiro tem menos moral para se sentir inferior em relação aos ainda mais ricos: para você se sentir inadequado entre uma classe mais alta, só sendo completamente fodido mesmo. Entendo a intenção, mas acho interessante lembrar que o tropo do transfuge de classe nasce (desde, por exemplo, Balzac, com Le Bourgeois gentilhomme, ainda no século XVII) precisamente na relação entre a aristocracia e uma alta burguesia abastada. Quando o tropo do dândi se cristaliza no fim do século XVIII, a burguesia que almeja aos modos aristocráticos é, via de regra, mais rica que a própria aristocracia. George Brummell, por exemplo, o arqui-dândi sobre o qual escreve Barbey d’Aurevilly, é filho de uma família muito próxima da realeza britânica. Brummell não se torna amigo do Rei George depois de adulto: os dois eram colegas no Eton College desde criança. Isto é, a ambição aristocrática do dândi (tropo que evoca A Boba da Corte, cuja alusão ao espaço aristocrático está inclusive no título) não é uma ambição de acesso a bens, mas uma ambição (por natureza, jamais plenamente conquistável) de acesso a status. George Brummell e o Rei George nasceram, digamos, os dois em Taquatema. Os dois estudaram nas mesmas escolas, frequentaram as mesmas festas de debutante. A diferença fundamental, que torna a posição de Brummell trágica, é que ele, por definição, jamais será um aristocrata. Por mais que ele esteja inclusive fisicamente no mesmo espaço que o Rei, ele jamais será como o rei.
Sally Rooney, Normal People
Pouco a dizer deste livro além que Sally Rooney parece ser uma das melhores usuárias da língua inglesa atualmente. Junto com Anne Carson, que, aliás, acho que faz um uso do inglês muito semelhante, assustadoramente contemporâneo.
Claire Baglin, On The Clock
Snippets da vida de uma adolescente que trabalha num McDonalds. A narrativa é ela própria uma espécie de hambúrguer, com relatos sobre a vida “on the clock” misturados com relatos de lazer com a família e pequenos dramas da vida quotidiana que vão aparecendo. Achei o sanduichamento das duas linhas do tempo um pouco confusas e despropositadas.
Annie Ernaux, O Lugar
Ernaux é muito precisa com as palavras, e acho essa tradução bem boa. O status trans-classe de Ernaux difere do de Bernardi (vide acima) em que para Ernaux a auto-produção enquanto membro de uma classe superior parece menos afetada (embora mais auto-consciente). Belo relato sobre o pai dela, sobre a vida do pai pobre em cuja visão de mundo “tudo custa caro” (p. 35). Vejo várias semelhanças com as vidas (inclusive a minha) em Três Coroas, sobre o qual falei um pouco numa resenha que escrevi há uns anos (aqui).