Imagem, Neymar e Sentido

Leitura e crítica de neymar é encontrado morto apos tentar chupar seu propio pau

Postado originalmente no site do brisolo, em coautoria com Asafe do Carmo.

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Ao que parece, esta obra, se vista em grupo e em condições específicas, chega perto de uma experiência de comunhão de alguma ordem espiritual, não muito dissimilar a qualquer rito de performance religiosa entorpecida, tentativas de conversar com o deus da Era, em várias regiões e momentos da humanidade.

Há algo estranho no vídeo. Algo que desconcerta, causa interesse, fascina, comove. Temos então que conceder que o que estamos vendo é, com todas as implicações desse reconhecimento, arte. E que, independentemente de seu suporte ou estilo, merece ser cortejada com as honras da crítica. Sob os elementos mais imediatos da visualidade, assim como em virtualmente toda obra, há uma malha simbólica produzida em um espaço, tempo e contexto determinados. (Re)conhecer esse material justifica, por si só, qualquer empreendimento de arqueologia semiótica do trabalho, como o que ora pretendemos.

Existe uma vontade por trás da repetição de diferentes ângulos do acidente com Neymar na Copa de 2014? Existe uma vontade a reproduzir Pastor Solitario, do grupo Ecuador Andes, durante o registro da morte de Neymar? A épater le bourgeois com o título neymar é encontrado morto apos tentar chupar seu propio pau? Que vontade se nos mostra uma introdução lamuriosa da flauta de pã? Os sinais que se exibem deixam escapar apenas uma palavra, um nome, quatro letras: roge. O autor ou autora do vídeo, ao apresentar-se dessa forma singela, nos força a uma reconsideração radical sobre qualquer traço de intencionalidade presente na obra. O que motivou roge? O que faz roge? Quem é roge?

roge é neto(a) da montagem de Eisenstein – duas coisas no cenário/mundo que precisam ser diferentes uma da outra, que precisam ser claras em suas diferenças, esta é a força das imagens, esta é a beleza eterna do cinema. De uma imagem pra outra, preservando a inquietude deste segredo, esta é a montagem.

roge é filho(a) de Godard, que é filho de Eisenstein – a História do Século XX é uma explosão, condensação e dissolução de imagens, onde em uma ordem – a sua ordem original e mentirosa – não significa nada, mas em outra – a ordem da natureza, da emoção, do desejo – significa tudo. A montagem então deve procurar esta beleza individual a cada imagem na própria fusão delas. A beleza vem da montagem, e depois se desprende da montagem.

roge é também filho(a) da internet – o estado do Século XXI é uma forma liquefeita de imagens que questionam o sentido, sem formá-lo nem juntas, nem separadas, nem de jeito nenhum. Existe apenas uma superabundância de eventos absurdos que nunca acabam e uma sucessão de imagens fotográficas ou digitais que tentam prender mineralmente estes acontecimentos.

roge mora no Brasil, e o Brasil é a linha de conga de eventos inexplicáveis, sem motivo nem consequência (ideia que se encarna da forma mais concreta e determinada nos corpos de Latino e Sérgio Hondjakoff). Se o sentido das imagens do Brasil confunde-se com o manto da confusão que as recobre, nos resta partir de seu sentido a sua beleza.

A contusão de Neymar em 2014. O clipe dos equatorianos. Não há sentido na relação entre os dois. E é preciso que não haja. A proximidade dessas duas coisas apaga o que os gestos significam e evidencia o que os gestão são. Eles são próximos porque são duas coisas sul-americanas. Há uma proximidade estranha. Afinidades eletivas.

A cena de Neymar se repete, sempre de ângulos diferentes. É a própria repetição, aqui, que engendra a diferença. Não subsiste uma sem a outra. No clipe de Pastor Solitario, por sua vez, esconde-se um aparente mistério. Há três instrumentos sendo tocados, mas apenas dois musicistas aparecem simultaneamente no vídeo. Há sempre um elemento excedente no todo. Uma sobra inatingível. Um algo que não cabe em qualquer estrutura tradicional de representação. Como um pináculo onde se concatena uma totalidade de contradições, roge, na esteira tanto da tradição fenomenológica quanto pós-estruturalista francesas, sugere uma ligação radical do ser e do nada; da diferença e da repetição.

Há um flashback para a copa de 2002, numa cena dos caras da seleção dançando e fazendo baderna em um lugar misterioso, trecho do vídeo “Ronaldinho e Vampeta soltando a franga”, de origem nebulosa. Desnecessária qualquer menção às diferenças entre as copas de 2002 e de 2014. Serve dizer apenas que, em questão de montagem, isso é providencial. A ideia das dimensões de tempo, se não fincadas em informação concreta, parece só uma viagem psicodélica (“os astros ainda recém-formados, a marcha da Vida Humana, o fim da Vida Humana e a Eternidade do Cosmos”). Para que seja sentido algum drama, é preciso também sentir o tempo de forma tátil. E nada grita “entropia” mais do que a comparação da copa de 2002 com a de 2014. É quase um comentário sutil sobre o declínio meteórico do Brasil justamente em sua sinédoque mais comum, o futebol.

Mas se fosse só isso seria sem graça demais. Apenas a revelação de que o tempo passa e as coisas decaem parece simplista demais, e já explorado em inúmeros territórios. Depois de remover esses recortes de tempo de suas perspectivas originais e reapresentá-las assim, juntas uma nas outras com cola e serragem, resta apenas destruir esta nova perspectiva também, e mostrar outra dimensão de tempo e de realidade ainda mais intensa.

neymar é encontrado morto apos tentar chupar seu propio pau é um trabalho atraente. Sua composição de ordem própria, criadora de harmonia peculiar, possui elementos que ensejam a contemplação, o distanciamento. Ao mesmo tempo, o jogo sutil com os tamanhos diferentes de quadro dos vídeos – 4:3 no videoclipe musical, 16:9 nas cenas do Neymar – nos traz de volta à presença imediata do objeto visual: estamos diante de pixels, unidades de imagem virtuais que se sucedem no tempo, uma atrás da outra. Não estaríamos em frente dos mesmos símbolos de que fala Bejamin quando reporta-se à observação das montanhas – ao mesmo tempo a distância e o aqui-agora?

O vídeo progride num crescendo até atingir um momento de breque, reforçado pela trilha, que agora assume protagonismo, em conjunção com o videoclipe dos equatorianos. O clima de tensão é rompido por um uivo de anunciação, que marca o contraponto melódico extraído de um registro muito mais grave da flauta de pã.

Sobre a tração da dupla anunciadora do contraponto – melódico, com a flauta grave, mas também imagético, com o rosto de Neymar caído em sofrimento sobre o gramado – somos apresentados a uma breve visão infernal, fora de qualquer compreensão até cognitiva (e supõe-se que o inferno seja justamente isso: perder a noção não só do significado, mas também do que está acontecendo ao seu redor, ser engolido). Depois disso, pulamos bruscamente pra outro plano de existência. Naruto.

E depois para outro onde tem uma criança dançando entre adultos em uma boate. Dessa vez, absolutamente nada a ver com o que veio antes. Parece que o exercício é justamente esse: Instigar os olhos com esta linha do tempo onde as coisas independem enquanto coexistem e nos forçar a ver essas coisas do jeito mais nu possível: O sentido da imagem é – e só pode ser – ela mesma. Então: Winckelmann, Faure, Croce, Eisenstein, Godard, roge.

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