Simmel resolveu, de certa forma, uma contradição fundamental na auto-compreensão moderna do mundo: aquela entre distinção—o desejo de ser único (Baudelaire, Veblen)—e integração—o desejo de pertencer a um grupo, de reproduzir as normas sociais (Weber). São desejos fundamentalmente modernos porque nascem com a consolidação da cidade moderna, caracterizada pela experiência (primeiro industrial, depois burocrática) da repetição, da regularidade e do achatamento da experiência do cotidiano.
Para o Simmel, o ponto de convergência dos dois pólos dessa tensão está na moda. A moda, para o Simmel, é precisamente a forma como nós, humanos em sociedades modernas, engajamos, ao mesmo tempo, com essas duas coisas. Quer dizer, através da moda, nós, indivíduos, nos distinguimos de outros indivíduos através de processos estéticos de auto-estilização. Ao mesmo tempo, nos integramos a uma rede de expectativas compartilhadas de comportamento. A moda, nesse sentido, serve como processo de integração. Ela é feita de tendências, de estilos mais ou menos adequados, de modos mais ou menos apropriados, de normas a serem seguidas. É, por definição, um empreendimento fundamentalmente coletivo. Ao mesmo tempo, é a nossa forma de afirmação de individualidade.
A moda está na encruzilhada entre a tendência (aristocrática) à distinção e a pressão (democrática) pela homogeneidade. Afeta, portanto, todas as classes. (Moda é necessariamente moda de classe, diria o Simmel). E por ter uma natureza aspiracional (você se veste e se comporta a partir das referências deixadas por alguém, ou alguma classe de alguéns que você respeita), a moda é também geradora de uma espécie de mal-estar. Isto é, ninguém nunca está muito confortável com seu próprio estilo, e o estilo do vizinho (de cima) sempre é melhor. Assim como a gente sempre quer estar fazendo outra coisa em qualquer momento do dia, também, de certa forma, quer sempre estar sendo de um jeito diferente. Estamos sempre, de certa forma, “dressing up”.
Nesse contexto, há uma tendência da burguesia de querer virar aristocrata. Uma tendência, para colocar em outros termos, das classes médias afluentes ou mesmo das classes superiores em se tornarem aposentados. Quem explica isso muito bem em termos econômicos é o Wallerstein em Burguês(ia) como Conceito e Realidade. Nesse artigo, ele explica essa tendência das classes médias—as classes que não são parte da aristocracia, mas que formam uma espécie de classe intermediária confortável nas sociedades modernas—de buscarem a transformação do modo de produção de lucro da compra e venda para a extração de renda. Ou seja, em vez de comprar e vender com lucro (método associado à identidade da burguesia traditional), a tendência dessas classes é buscarem manter propriedade e extrair renda dela: em vez de vendê-las, cobrar pelo seu uso. (Aliás, o vocabulário do Wallerstein, que chama as classes médias de “burguesas” e as altas de “aristocráticas”, informa a terminologia desta minha nota).
Me parece que no campo estético há uma relação homóloga. Uma tendência das classes médias confortáveis de abdicar do tradicional estilo burguês-protestante (ter um passado fodido, trabalhar muito e comprar um lugar no céu) e almejarem o estilo rentista do aposentado (herdar uma bolada e passar a vida na beira da praia em Aruba/esquiando em Aspen/sentado num pelego em Gramado). Obviamente, isso não é propriamente novo. O tratamento que o Bourdieu deu ao conceito de “distinção” chega à conclusão de que as classes médias almejam ao estilo das classes superiores. As classes inferiores, o das classes médias. E as classes superiores, um estilo novo que ainda não tenha sido copiado. Para o Bourdieu, o gosto (e, por associação, as ambições de estilo) “trickles down”, isto é, as classes inferiores ambicionam o estilo das classes superiores.
Se esse é o caso, então estamos todos sempre mais ou menos desconfortáveis nas nossas próprias roupas. Principalmente as classes médias, por motivos já explicados alhures. São as classes médias que têm os modos aristocráticos (em outros termos, o estilo de vida rentista, o lazer eterno) como horizonte de ambição. A identidade das classes médias é, então, sempre um problema.
O que resta investigar, me parece, é a relação dessas diferentes disposições de classe com o trabalho. As discussões recentes sobre trabalho, automação, renda básica, trabalho como forma de reprodução social etc.—me parece—devem considerar que a recusa ao trabalho não é necessariamente uma posição que se situa nas franjas do espectro político, e se são radicais, o são no sentido de que estão na raiz da auto-compreensão do sujeito burguês. Isto é, a burguesia, por definição, e em função da estrutura de formação de ambições da sociedade moderna, *tende* a querer se comportar como a aristocracia: economicamente, isso significa viver de renda. Em termos de estilo, significa viver de férias.
As classes médias são ao mesmo tempo “remediadas”, portanto definidas negativamente em relação às classes trabalhadoras, e “ambicionantes”, portanto o negativo das classes altas. Em termos definicionais, estão em uma posição precária. Tendem a dois extremos que não a incluem. A tendência de ambicionarem à vida do lazer aristocrata, de certa forma, está presente desde o princípio—é o que os sociólogos nos dizem. Mas talvez só seja tão plenamente visível—de modo que seja quase óbvio apontar que as classes médias gostariam de viver aposentadas—em um contexto que as force à inexistência, à negatividade latente presente desde sempre: um contexto de imensa concentração de renda e precarização do trabalho.
A negação do trabalho, para resumir, está em gérmen na própria auto-concepção da burguesia enquanto classe média. É fundamentalmente moderna. A ambição burguesa sempre foi ser aristocrata, embora talvez isso só tenha se tornado plenamente visível recentemente. A consecução do fim do trabalho, de certa forma, seria um mero desdobramento natural das revoluções burguesas do século XVIII.