Antes de estudarmos as formas de efetivação, aquisição, perda, formação ou ideação do direito, me parece sensato fazermos uma pergunta logicamente anterior: o que é o direito? Do que se trata o objeto das leis, a fundação do Estado moderno e a área de estudo da jurisprudência? A leitura de Will Kymlicka a respeito da ideia de comunismo como uma etapa pós-justiça, em seu livro Contemporary Political Philosophy, me fez pensar nesse assunto. As bases do pequeno esboço de ideia que proponho, entretanto, são hegelianas. A proposta aqui é tentar formular a pergunta “o que é o direito”, antes de “o que deve ser o direito”. Obviamente isso precisa ser desenvolvido muito mais, mas a forma mais embrionária do pensamento é a seguinte.
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A vida em sociedade é uma necessidade humana, a ponto de podermos dizer que nosso eu só é formado se em contato, interação, troca, luta com e contra o outro, de forma necessariamente dialógica.[1] Entendendo que (a) exista uma limitação quantitativa de recursos e modos de fruição de um conceito de boa vida[2] em qualquer sociedade e (b) diferentes pessoas podem almejar o mesmo recurso ou modo de fruição de boa vida, pode-se concluir que (i) pessoas podem entrar em desacordo sobre o modo de alocação desses recursos e modos.
Certas apropriações de recursos ou conceitos podem ser vistas pela sociedade (tanto de modo geral, como por cada indivíduo) como legítimas, outras podem ser vistas como ilegítimas e, portanto, podem ser reivindicadas individualmente. É intuitivo que a sociedade enxergaria como legítima minha ação, por exemplo, de caminhar por um passeio público – a sociedade me reconhece como legitimado a caminhar no local público, ou seja, eu tenho um direito a realizar essa ação. Se alguém turbar minha caminhada pelo passeio público imotivadamente, eu posso, a partir do meu direito exigir uma ação contrária à turbação a partir da sociedade, corporificada no Estado.
Dando um passo a frente: numa dada sociedade onde a profissão de professor seja altamente valorizada, é desnecessário que haja leis reconhecendo a necessidade de valorização desse profissional, já que esse reconhecimento é orgânico[3]. A forma do professor atingir tal ponto de valorização não foi através da lei. A lei se torna necessária quando o reconhecimento não é imediato e só se torna manifesto depois da mediação da vontade individual pelas instituições sociais.[4]
Se numa dada sociedade, usando o mesmo exemplo, a profissão de professor é pouco valorizada, é possível que surja das instituições da sociedade civil ou do próprio Estado em forma de política pública a necessidade de valorização da profissão. Como o valor não existe naturalmente, será criado a partir dos meios que detém o Estado: o direito, através da lei. Se o professor não é organicamente reconhecido pela sociedade como profissional merecedor de valor, será reconhecido através de um título de reconhecimento, ou seja, um instrumento público (pois emitido/outorgado pelo Estado a partir da mediação exercida pela sociedade civil) que substituirá o reconhecimento orgânico e será oponível a todos (erga omnes) para os mesmos fins, com a diferença de contar com o aparato estatal em seu lado no caso de descumprimento do título por outrem.
Numa sociedade utopicamente harmônica, podemos imaginar a situação em que o reconhecimento é orgânico, incontestado e respeitado. Se pressupusermos a existência de propriedade privada, por exemplo, e a forma originária de aquisição pelo uso, é possível imaginar (ressaltado, num mundo utópico) que ninguém contestaria minha propriedade da maçã que colhi da macieira para comer. A partir do momento que há, exercida por algum indivíduo, uma contestação dessa minha legitimidade, se ela for amplamente reconhecida pela sociedade civil, nasce a necessidade de um direito que reconheça publicamente o que não foi reconhecido individualmente por esse indivíduo em específico, no exemplo, minha legitimidade em me apossar da maçã.
[1] George Hebert Mead; Charles Taylor. Multiculturalism.
[2] A ideia de conceito de boa vida perpassa a discussão entre liberais e comunitaristas, mas não é essencialmente relevante aqui. Ver Rainer Forst. Contextos da Justiça para detalhes.
[3] Orgânico aqui é sinônimo de natural, ou seja, que independe de qualquer ação institucional.
[4] i.e., a “vontade geral” não é a “vontade da maioria”.