Dicionário Pessoal de Pequenos Desgastes

verbete “o sujeito que reclina a poltrona da frente no ônibus”

Dos tipos sociais prontos que admitem o ódio genérico, um que se sobressai pela proximidade física, parte constitutiva da justificativa do ódio, é o sujeito que reclina a poltrona da frente no ônibus. Como bom sujeito genérico, o comportamento do tipo é baseado num padrão repetível. No movimento de perturbação que é uma viagem de ônibus com o sujeito, o ponto inicial é marcado pela onipresente brusqueza no movimento de reclinação. O tipo não se importa se existe mundo atrás de si. Se há maneira possível de aumentar o ângulo de trabalho entre as pernas e a espinha, a ordem é de que a empreitada seja levada a cabo, por meios lícitos e ilícitos. Seu desprezo por qualquer forma adventícia de vida que possa sentar-se atrás de si tem como instrumento declarativo o próprio ato de reclinar: (1) Nunca devagar, o movimento toma a forma de um coice. Como cético radical, e alinhado às tendências mais recentes da pesquisa em mecânica quântica, o único universo possível ao reclinador é aquele para o qual ele está olhando. As coisas que estão atrás de si não existem, portanto não são merecedoras de consideração no cálculo da velocidade com que se reclina; (2) Sempre no grau máximo, o sujeito que reclina não vislumbra a utilidade ou eficiência ergonômica de qualquer nível de reclinação que não seja todo aquele permitido mecanicamente pelo assento. A reclinação é prazerosa. Reclinar é gozar. Aos joelhos alheios cabe apenas entender e aceitar em silêncio.

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