Diários do dandismo de massas #2: sobre o termo
Como eu sugeri anteontem, esta é uma série de polaróides de um projeto em andamento. Com isso, quero dizer que não me comprometo muito com nada do que escrevo. (Não que importe). Fiquei hoje de tratar do termo “dandismo de massas”, que ficou faltando no último post.
No Notes on Camp, a Susan Sontag dedica quatro das 58 notas que dão título ao ensaio à associação entre distinção e cultura de massas. O camp, segundo ela, nutre um apreço pelo desinteresse, ou pela indiferença (detachment). “E assim como o dândi é o representante do aristocrata em questões de cultura” diz ela, “o camp é o dandismo moderno”. O dandismo inglês e francês do século XIX era fundado numa ideia individual de distinção, desinteresse, fruição estética e lazer. O acesso à cultura era, naturalmente, prerrogativa aristocrática ou da alta burguesia. O dandismo, ícone da distinção e do desinteresse, era então só possível ao burguês abastado, que poderia comprar cultura.
[Um parênteses: um dos textos mais canônicos do dandismo é “Do dandismo e de George Brummel”, do francês J. Barbey d’Aurevilly. O livro, de 1845, trata da figura de George “Beau” Brummel”, dândi inglês nascido em uma família próxima do poder e que se tornaria o arquétipo do dandismo (além d’Aurevilly, também Jacques Boulenger, Arnould Frémy, e Balzac, em seu Tratado da vida elegante, escreveram sobre ele). Beau Brummel representava, para d’Aurevilly, o oposto do tipo do “excêntrico”, aquele que se volta contra a ordem estabelecida e, no limite da loucura, contra a própria natureza. Brummel não era um excêntrico, mas um dândi: um respeitador da regra, um explorador das maneiras de ser através de seus aspectos mais materialmente visíveis”, e um amigo próximo do rei da Inglaterra].
As condições de singularidade e individuação dos séculos XVIII e XIX já não estavam mais disponíveis (ou estavam disponíveis de uma forma muito outra) na metade do século XX. Não era mais possível se vestir de uma maneira perfeitamente singular quando sua roupa passava a ser comprada na loja, e produzida junto com centenas de outras peças iguais, por exemplo. Dado que a necessidade de distinção ainda era premente, Sontag diz que o camp—com uma espécie de mirada irônica sobre o refinamento—é uma espécie de “dandismo na cultura de massas” [dandyism in the age of mass culture].
A formulação da Sontag é muito boa, e captura o conflito ou a contradição entre—em termos mais econômicos—escolha individual e inserção em um mercado de massas, ou—em termos mais culturais—distinção/individualidade e auto-dissolução em tipos formulares/prontos. Os alemães do início do século XX eram menos crentes em qualquer possibilidade de resolução dessa contradição. No ensaio sobre o Ornamento da massa do Kracauer, ou posteriormente na ideia da estetização fascista da política do Benjamin, por exemplo, a formação de uma cultura de massas parece ser diametralmente oposta à individualidade, à personalidade, à autenticidade etc. O “ornamento da massa”, a forma com que a sensibilidade quotidiana da massa retorna sobre si mesma em forma estética, é, para o Kracauer, análogo à racionalidade abstrata e matematizante do modelo de produção capitalista. Dá para se ter ou uma coisa ou outra, individualidade ou uniformidade, mas não ambas.
A fórmula da Sontag parece dar conta da contradição sem propriamente eliminá-la com um lado subsumindo o outro. Mas o que me parece ser uma diferença entre, de um lado, o camp enquanto “dandismo na cultura de massas” e, do outro, um “dandismo *de* massas” é a atenção ao seu agente. Um dandismo *de* massas estaria mais preocupado em dar conta não apenas da impossibilidade de distinção à maneira do século XIX em um contexto de capitalismo tardio, mas de quando esse tipo de distinção assume uma forma em si coletiva. Quando o distanciamento e a distinção parecem ser encontrados justamente em uma empreitada compartilhada, socializada, em subculturas que giram ao redor de formas de auto-expressão (algumas das quais citei no #1).
O dandismo de massas, enquanto conceito organizador, oferece uma hipótese para responder à pergunta sobre as possíveis alternativas à tese da estetização fascista da política. É possível haver modos de estetização/auto-apresentação sensível que sejam ao mesmo tempo coletivos/de massas mas não meramente reacionários/fascistas? O que significa uma vontade de distinção em massa? O que é uma distinção coletiva? Etc.
Se é verdade que o fascismo disputa com o comunismo a organização da classe trabalhadora, talvez no campo da distinção haja algo análogo: a disputa, por exemplo, entre uma estetização (homogeneizante) de massas e um dandismo (singularizante) de massas.