Diários do dandismo de massas #1
Tem uma frase do Foucault em que ele diz algo como: não escrevo porque tenho alguma coisa para dizer e preciso dizê-la, mas porque justamente não tenho nada muito específico para dizer, e escrever é uma forma de transformar essa ausência de algo para dizer em uma coisa, em algo para dizer. Enfim. Já devo ter mencionado isso talvez até neste blog algumas vezes, mas depois que me deparei com esse pensamento ele me ocorre com frequência. De fato, uma frequência baixa o suficiente para eu não me dar o trabalho de escrever com frequência, mas, mesmo assim, alguma frequência.
O intróito foi esse porque estive pensando, hoje, sobre usar este espaço, meu blog, como um ambiente semi-público para articular um pouco os meus pensamentos ao sobre a minha pesquisa. Hoje à tarde passei um tempo conversando com dois colegas do departamento e falei um pouco sobre o que estou estudando para a tese. Falar sobre meu tema de pesquisa me faz refletir um pouco sobre ele, e toda apresentação para um público envolve uma organização mental ao redor do tema. Às vezes, a organização se dá justamente no momento do discurso sobre o tema. Tenho achado que estou atrasado com a minha proposta de tese, perdendo os prazos. E um pouco do motivo é a falta de ocasiões em que simplesmente paro e reflito sobre o meu tema, escrevendo. Este blog, então, talvez seja esse espaço.
Me refiro a um ambiente “semi-público” porque, não sendo em uma plataforma em que tenho muitos seguidores, o texto não vai circular muito. Não é, portanto, propriamente público, ou muito público. Não é privado também, como seria um documento do Word. Isso tem mais a ver com a minha necessidade, enquanto alguém que está escrevendo alguma coisa, de não apenas pressupor um público mas me dirigir diretamente a ele. Daí talvez a minha dificuldade de escrever diretamente no Word, que associo a um tipo de escrita impessoal, e sem público muito bem definido, e minha prática de normalmente começar meus ensaios em lugares como o Facebook, o Medium etc. Às vezes o Twitter, embora a rede seja um pouco avessa ao texto mais longo.
Não vou ficar me justificando sobre a natureza desse texto—acho que já fiz demais. Nem sobre a qualidade dele, que vai sem edição nem revisão. Este é um monólogo para mim mesmo.
Enfim, minha tese. Tenho estudado um fenômeno que chamo de “dandismo de massas”. O termo, para mim, começou como uma espécie de piada, e o registro mais antigo que tenho de seu uso é em um tuíte de 19 de novembro de 2021:
Não é exatamente uma piada, mas também não é completamente sério. É meio barroco. As coisas que eu estava pensando naquele momento, e que são ainda em grande parte as coisas que eu estou pensando agora e que decidi transformar em tese em filosofia, tinham a ver com expressão estética, apresentação e representação de si, e questões em torno de conflitos de classe e pertencimento.
O dândi, afinal—em sua forma literária do século XIX, baseada, por sua vez, nos tipos sociais urbanos ingleses e franceses alguns dos quais já surgiam no século anterior—é o arquétipo do burguês esteta que almeja aos modos aristocráticos. Diz respeito a um indivíduo que não nasceu com um direito de pertença às atividades da corte, por exemplo, mas que quis entrar nela mesmo assim. Um traidor de classe, pode-se dizer, só que um que trai pra cima, em vez de para baixo, como no tropo do filho burguês que se rebela com os pais e se junta à luta armada—o “hipster”, com o sentido específico daquele ensaio mal-afamado do Norman Mailer. O dândi é um anti-hipster, mas que não é “anti” porque reivindica uma autenticidade, uma sinceridade de classe e identidade, mas porque, em vez de reagir à sua classe de origem através do que pode ser visto como uma abdicação de seu acesso a bens e status, o faz buscando *outros* bens—e, principalmente, outros status. [Não gosto de traduzir status como estatuto, mas também não gosto que o plural fique idêntico ao singular. A ver].
Baudelaire diz que o dândi é uma figura de transição. Ela aparece quando a aristocracia está decadente e dando lugar a um regime democrático. Mas Baudelaire não explora muito esse motivo. Não explica por que, ou o que há de particular na decadência da aristocracia que a torne tão mais atraente à burguesia do século XIX. [Talvez essas respostas estejam nas várias teses (vide Kracauer, Simmel, talvez Weber) sobre o esfacelamento moderno do sentido da vida, que vem junto com a diminuição da influência da religião na vida quotidiana. A ver também.]
O que *me* interessa no dandismo é sua estrutura: o leitmotif do sujeito que, insatisfeito com sua posição de classe, almeja ascender socialmente. Principalmente, me interessa quando isso acontece nas classes trabalhadoras, ou nos lumpens afetados pelas várias empreitadas coloniais, e quando toma formas coletivas. Quando grupos inteiros se veem numa posição de insatisfação ou não-reconhecimento de sua posição de classe “original”, e esse não-reconhecimento afeta sua performance de classe, seus modos de auto-apresentação, de expressão estética de si. São os exemplos mais imediatos os sapeurs, entre o Congo e a França e Inglaterra, os pachucos, entre México e Estados Unidos, os zwenkas, na África do Sul, ou mesmo os zazou na Paris pós-guerra, os funkeiros ostentação no Brasil, etc.
Deixo para amanhã falar sobre as formas que toma esse interesse. E também sobre a origem da expressão “dandismo de massas”. Se der tempo.