OK. Basicamente, eu fui roubado e me envolvi num problema prático de multiculturalismo.
Já peço desculpas pela frase acima em razão da decepção que ela vai causar, mas reescrevi ela umas trezentas vezes pra tentar resumir o episódio insólito que acabou de me ocorrer e não achei nada melhor. É um pouco mais complexo que isso e os detalhes vão abaixo. (Antes que se assustem, os que pararão por aqui: está tudo maravilhoso comigo, obrigado).
O PANO DE FUNDO
Os departamentos de história da arte das quatro grandes universidades de Montréal organizam conjuntamente, todo ano, uma série de conferências chamada Hypothèses. As conferências acontecem todo mês em um auditório do Museu de Belas-Artes de Montréal e cada uma delas tem um tema específico sobre o qual são apresentados dois trabalhos. Combinei com um amigo de irmos na conferência que aconteceu hoje. O tema era: “Desconstruir a autoctonia: discursos e artistas”, e as duas apresentações eram sobre artistas autóctones.
O trajeto da minha casa até o museu dura uns 30 minutos de ônibus. Vesti meu casaco, botei uma revista debaixo do braço, peguei um café na cafeteria da esquina e me pus a esperar o ônibus. A revista era a New Yorker de segunda-feira (doravante denominada “revista”), e a menção deste detalhe não é acidental. Topei com meu amigo no museu e entramos no auditório. A primeira apresentação era sobre a recepção do trabalho da artista Nadia Myre; a segunda, sobre uma estética autóctone no cinema experimental abstrato. No fim das apresentações, foi aberto espaço para discussão. Um artista visual autóctone (doravante denominado “artista visual”) pediu a palavra e fez uma crítica a um ponto polêmico da segunda apresentação, que foi seguida de uma discussão acalorada sobre como a abordagem era super colonialista. Até aí, nada especial.
Após a conferência, foi servido um coquetel com queijos e vinhos. Eu estava com a minha revista na mão, e como ia ficar com um queijo numa mão e um vinho na outra, deixei ela numa bancada perto da mesa do coquetel. Meu amigo e eu ficamos a uns dois ou três passos dali. Eu estava de frente para a revista, ocasionalmente indo até a mesa para pegar mais queijo, mas com a revista em geral sob vigilância constante. Ficamos conversando. Em dado momento, o artista visual aproxima-se da bancada, junto com uma amiga, e começa a folhear a revista. E com isso passamos, de forma lenta, gradual e negociada, para o segundo ponto.
A CONTRAVENÇÃO
Que o artista visual tenha folheado a minha revista que calhava de estar em cima da bancada foi um fato apenasmente computado por mim. Continuei conversando com meu amigo. Percebi que o artista visual tinha parado na última página da revista, onde fica a sessão de tirinhas, e estava rindo de uma delas com sua amiga. Comentei com meu amigo que estavam folheando a revista que eu tinha deixado na bancada. Continuei observando. Vejo que o artista visual sub-repticiamente fecha a revista e a segura na mão, não mais sobre a bancada, mas coincidentemente perto de sua bolsa a tiracolo. Falo para meu amigo: “acho que estão pegando minha revista, não sei se eu devo ir até lá e dizer que é minha”. Continuo observando. O artista visual e a amiga afastam-se da bancada e vão até a outra bancada, a dois passos dali, que estava ao lado da porta e sobre a qual estavam alguns folhetos do evento. Dois segundos depois, saem porta afora. O artista visual havia roubado a minha revista.
Na hora, fiquei perplexo. Primeiro porque eu nunca tinha assistido ao vivo e sem interrupções a alguém furtando alguma coisa minha. Segundo porque, quem é que encontra uma revista numa bancada e pega pra si? Terceiro porque era a New Yorker, que é uma revista meio cara, mas merecedora do meu racionado dinheirinho, e porque eu tinha comprado ontem e não tinha lido nem metade.
Fiquei discutindo com meu amigo sobre se eu deveria ter ido até eles quando achei que estavam em vias de levar minha revista embora e ter dito alguma coisa. Mas o que eu ia dizer? “Oi, tudo bem? Se importa se eu pegar de volta a minha revista que tá embaixo do teu braço?” Impossível. Eu teria ficado mais constrangido que o cara, e é tão desconfortável, até fisicamente, fazer isso com alguém, porque a pessoa ia ficar tão envergonhada na hora e, enfim… Mas ao mesmo tempo, aquela era a minha revista. Não é possível que ele simplesmente tenha achado que era um souvenir do evento. Também não poderia ter achado que era lixo, já que a revista era de dois dias atrás! Acabei desistindo. Falei para o meu amigo que o artista visual tinha vindo na última conferência, no mês passado, então possivelmente também viria na próxima, no mês que vem, e que eu poderia falar com ele então. Mas obviamente eu não teria a cara de pau de fazer isso. Cinco minutos depois, fomos embora.
O hall onde estavam servindo o coquetel era no segundo andar, e a porta de saída dava para um mezanino, de onde se podia ver o saguão de entrada do museu. Quando saí pela porta, olhei para baixo e vi os dois: o artista visual e a amiga. Ambos caminhando pelo saguão. Se em algum momento da minha vida eu fosse até o artista visual e pedisse de volta minha revista, seria este. E isso nos leva ao terceiro momento.
A RESTITUIÇÃO
Chamamos o elevador imediatamente. No curto trajeto do segundo andar ao térreo, discuti com meu amigo o que dizer para o artista visual que estava com a posse provisória e ilegal da minha New Yorker. A sugestão dele foi chegar com um “ESCUTA, COM LICENÇA!?…”, com o indicador em riste, e aí pedir a revista. Não o fiz, obviamente. Saímos do elevador, olhei para o artista visual, ele olhou para mim. Fui caminhando até ele. Nossos olhares estavam fixos um no outro. Nem sei dizer o que acontecia no ambiente ao redor de mim naquele momento, tamanha a concentração.
Cheguei até ele, ele deu um passo à frente, e eu falei (esta é uma tradução precisa das palavras que usei em inglês): “Oi, com licença… É… Eu acho que talvez tu tenha pego a minha revista por engano. É uma New Yorker – eu deixei naquela mesa”. Minha bochechas deviam estar, neste momento, no mínimo, rosadas. Ele abriu a bolsa a tiracolo e tirou a revista, que estava dobrada ao meio, enquanto dizia algo como: “Ah, eu não sabia que era tua. Desculpa”. E eu respondi (novamente, tradução exata): “Claro. Desculpa incomodar. Tenha uma boa noite”.
Se eu já estava perplexo antes, a perplexidade agora era apenas em relação ao fato de que eu, um estrangeiro, latino, mas descendente de europeus, disse “desculpa incomodar” a um artista visual autóctone, depois de ter restituído a revista que era minha e que ele tinha enfiado na bolsa e saído andando, num contexto de um museu de belas-artes de um país do norte que abrigava uma conferência sobre arte autóctone seguida de uma discussão sobre colonialismo.