De 20 a 23 de agosto deste ano aconteceu a 6º edição da Université Populaire, evento organizado anualmente pela publicação Nouveaux Cahiers du Socialisme, revista canadense que discute política, teoria e cultura a partir de uma perspectiva socialista. O evento aconteceu na Université du Québec à Montréal (UQAM) e eu participei durante os dias 21 e 22, quando se concentrou a maior parte dos painéis.
Paralelamente ao evento, o grupo responsável pela próxima edição do Fórum Social Mundial realizou algumas atividades e organizou a Global Square, um espaço amigável para os frequentadores do evento se conhecerem e discutirem (e com almoço de graça).
O evento foi incrivelmente produtivo e eu voltei com muitas anotações. Compartilhá-las aqui, além de possivelmente servir para que alguém mais possa se aproveitar delas, também me ajuda a pensar sobre cada um dos temas. Como elas estão todas desorganizadas no meu caderno, eu não sei dizer o que pode ser diretamente atribuído ao palestrante ou o que é comentário meu. Neste post elas estão um pouco mais desenvolvidas do que originalmente no meu caderno, então boa parte é de insights meus. Além disso, os painéis tinham normalmente três pessoas e algumas das anotações não distinguem quem falou cada coisa.
Austeridade e desigualdades
Eve-Lyne Couturier, Philippe Hurteau (não compareceu), Guillaume Hebert e Jim Stanford. 21 de agosto, 9h.
#1. O neoliberalismo não é a redução do Estado, mas sim a transformação dele. No fim do dia, as mudanças substanciais que a etapa neoliberal do capitalismo impõe à forma do Estado não tem a ver com sua redução necessariamente, mas com a alocação de recursos de uma área para outra, com transformação de funções. Me lembrou de uma fala de outro socialista canadense, Leo Panitch (que, aliás, tive o prazer de assistir numa palestra recente sobre a situação política e econômica da Grécia). Panitch disse e eu cito:
People have engaged in miseducation, people on the left. Whether they’ve done it as academics (and most academics have engaged in this miseducation) or as social activists, they’re treating neoliberalism as a matter of ‘deregulation’, as ‘less state’, as bypassing of the state by capital. It’s not the case. Neoliberalism involves a very active state, involved in an enormous amount of regulation in order to establish market relations more deeply and more widely across the globe. Of course it involves a transformation in some of the roles that departments of labor, departments of welfare previously played, but even welfare agencies, insofar as they’re no longer providing as much income maintenance as they used to, when you end welfare as you know it, you still have very, very active welfare agencies, insuring that people are entering into labor markets, at wages whereat they’re able to compete with Vietnamese women working on a dollar a day. So in no sense has involved in a diminution of the state.
(Palestra no Youtube)
#2. O dinheiro é uma convenção social, ele não “existe”. Os recursos naturais, por outro lado, existem. Crítica à subsunção de toda lógica à lógica do capital, a partir do exemplo de um gasoduto que cortaria o Québec e teria um grande impacto negativo em diversos biomas: os argumentos favoráveis à construção geralmente salientam os benefícios econômicos da construção. O dinheiro não é nem pode ser o único ‘metro’ de acordo com o qual as coisas são julgadas.
#3. A austeridade é essencialmente um projeto político, não econômico, no sentido estrito do termo. Jim Stanford, economista, disse: “There’s no material basis for austerity”. Experiências têm comprovado que medidas de austeridade não ajudam a resolver crises econômicas. A austeridade é um projeto político que visa implantar, no interior do Estado, uma lógica de mercado. O Estado, voltando ao ponto um, não é um player menor para a lógica neoliberal, mas sim o ator central na mise-en-place do neoliberalismo.
#4. Várias críticas interessantes do Jim Stanford (autor de Economics for Everyone). i. Ele advoga por uma retomada da labour theory of value, apesar de não ter mencionado Marx nenhuma vez. Produção começa com endowments da natureza. O trabalho adiciona valor. O PIB é a soma total desse trabalho, que pode ser descrito como qualquer esforço humano (trabalho intelectual também é trabalho etc.). ii. Há o lugar-comum de que dívida é ruim para o Estado. Não é necessariamente assim. O Estado, para investir, precisa contrair dívida, da mesma forma que uma empresa precisa de dívida para investir (construir, implementar novas tecnologias), ou que uma família precisa de dívida para investir (pôr os filhos na escola, comprar uma casa etc.).
#5. O discurso oficial do FMI hoje é contra as medidas de austeridade. Teve uma pequena discussão com um cara que estava assistindo. Não sei se essa posição do FMI é meramente sarcasmo ou se demonstra que, se for ‘sincera’, o pensamento neoliberal opera de forma totalmente objetiva, como eu já disse em outra ocasião, não precisando de pessoas ou instituições que o pensem ou determinem seu funcionamento.
#6. Guillaume Hebert: a esquerda, além de pensar o público, o que é tradicional e caro a ela, não pode se furtar de pensar também o privado. É necessário desdiabolizar o privado, pensar uma boa utilização dele. Que tipo de privado? etc.
A esquerda e a questão nacional
Robert Laplante, Jonathan Durand-Folco, Rosa Pires. Mediação Pierre Mouterde. 21 de agosto, 11h30.
#1. Necessidade de pensar além dos conceitos de classe e nação. Proposta de pensar em termos de “povo” versus “elite” como forma de superar (?) a ideia de esquerda e direita. Não exatamente superar, mas entendo e sou muito simpático a ideia de chamar a atenção para o fato de que hoje é muito mais difícil identificar uma luta de classes em termos de burguesia contra proletariado, visto que o que seria o proletariado hoje envolveria 99% da população (nem sei se é hipérbole).
#2. Quem é o povo? i. Cidadãos que participam da coisa pública. Cidadão não num sentido do contexto da revolução francesa etc. ii. Precisa-se criar uma identidade cidadã e popular. Não são conceitos prontos, precisam de mediação e construção. iii. Soberania popular não é soberania nacional. (Exemplo da Grécia. Soberania formal, nacional, mas sem soberania do povo frente ao poderio do capital internacional). Controle democrático da economia, empresas etc. O povo deve exigir a construção de instituições a seu modelo. Menção à ideia de “socialisme par la bord”, que eu não anotei o que significa.
#3. Rosa Pires. O “nós” do neoliberalismo (democracias liberais) é um nós pasteurizado. As classes sociais, porém, tem cor, tem sexo etc. O “nós” pretende uma neutralidade que não existe; finge que todos tem acesso aos mesmos recursos. “A cultura substitui o fator racial”.
Insight meu: lutar pelos direitos de “todos os povos e classes”, apesar de desconsiderar, por exemplo, a luta de classes, ou inclusive as diferenças singulares de grupos diferentes, pode ser benéfico no sentido de “nivelar por cima” as demandas, da mesma forma que a ideia da “renda básica” nivela por cima. Direitos humanos podem muito bem ser usados a favor de uma proposta política socialista.
O retorno dos “comuns”
Colette Saint-Hilaire, Yannick Delbecque, Fanny Theurillat-Cloutier. Mediação de Philippe Langlois. 21 de agosto, 14h.
#1. A ideia do “comum” (Hardt, Negri, Dardot, Laval) como caminho para a luta por emancipação. Explicação do livro “Commun” do Dardot. Não tem a ver com comunismo eterno (Badiou), mas algo em movimento – reorganização das práticas sociais. Não é essencialista/naturalista. Rejeição a todas abordagens metafísicas. O comum parte da realidade social. É a atividade concreta que produz o ser humano e o comum. Negação da via autoritária – socialismo científico. Menção ao movimento altermundialista (Seattle/POA) – não à apropriação neoliberal do comum (que á possível). Crítica ao Estado-providência de Harvey. Neoliberalismo como subordinação de todas as esferas de vida ao capital. Alguns teóricos entendem o comum como uma alternativa ao público vs. privado. Crítica ao otimismo “jovial” de Negri. Menção ao movimento associacionista.
#2. Proprietarização: processo de tornar propriedade; diferente de privatização, que é tornar algo que já é propriedade, privado. Por que a gente só consegue imaginar cafés, quitandas, bares autogestionados? Por que não é possível imaginar uma fábrica de computadores autogestionada, por exemplo? Pensar nesse sentido da proprietarização.
#3. O comum njão é algo para viver com o capitalismo, como é a economia solidária. É algo para dépasser o capitalismo. Quem é o sujeito político do comum? “Grupos que decidem se unir para alcançar o comum” (acho problemática essa definição).
Partidos e movimentos: a experiência europeia
Andreas Karitzis (SYRIZA), Jorge Lago (Podemos), Andres Fontecilla, Roger Rashi (mediação). 22 de agosto, 11h30.
Karitzis: #1. Problema de que a economia acaba não “valendo” para questões econômicas: isso seria matéria para tecnocratas, gente que “entende do assunto”. Diz ele, “no neoliberalismo, democracia não é aceita”. O negócio é trabalhar “abaixo do radar do neoliberalismo”, e ao mesmo tempo orientando o povo contra ele. O poder estatal, para isso, não é suficiente, no sentido de empower o povo. O referendum na Grécia teve um papel além do institucional, no sentido de mobilização popular etc.
#2. “Pessoas votam e os movimentos demandam”. Isso não é mais suficiente na atual dinâmica do capitalismo. Necessidade de uma nova articulação. Uso da democracia como uma ferramenta, não apenar como “institutional arrangement”. On a side note: Tirar os ‘poderosos’ do poder não vai fazer com que os produtos deles sumam. Quer dizer, o neoliberalismo está nas formas de pensar etc.
Lago: #3. Não existe um sujeito político pronto, dado, seja pelo trabalho, pela posição social, ou por qualquer outro fator (crítica a Marx). O sujeito político deve ser construído. Menção a Laclau e Gramsci. Indignados como exemplo de fomento, de criação de sujeitos políticos. Um desafio é tornar políticas as diferentes expressões de sofrimento individual [isso soa bastante fascista, e ele reconheceu, num momento, que o projeto pode cair para uma faceta fascista. Mas, como não há sujeito político dado, isso é algo imprevisível].
#4. Os símbolos da esquerda não funcionam mais para construir um sujeito político que fuja a essa clivagem ideológica (que é, a meu ver, o projeto do Podemos). É mais vantajoso, apesar de possivelmente doloroso para a esquerda mais ortodoxa, hard-wired, abandonar o drapeau rouge, os hinos, os símbolos, etc. (Percebo que o PSOL, pelo menos a partir deste ano, parece estar indo nessa direção). Talvez seja realmente uma boa forma de concatenar diferentes experiências da clivagem “povo vs. elite” através do que hoje chamamos de diferentes classes sociais. Todos sofrem com o neoliberalismo (menos a elite, talvez), o desafio portanto é conseguir trascrever esses ‘sofrimentos individuais’ em algo comum, talvez.
#5. Necessidade da esquerda de traduzir os discursos complexos para uma common parlance, para que o povo entenda. Para isso, valorizar inclusive meios que são tradicionalmente overlooked pela esquerda. Maior exemplo: televisão, grande mídia, etc. Tem que se chegar à parcela da população que não é atingida pela luta social. Uso da mídia para isso.
Comentário: em todo momento, Lago deixa claro que tudo isso que ele está falando está no nível de uma hipótese política, que está sendo construída, e que pode dar certo ou não. Tudo isso é passível de teste. Em 13 de dezembro, aliás, há eleições na Espanha.
Uma curiosidade. Sobre a bandeira do Podemos, que é roxa (e eu imaginava que não tinha significado nenhum, senão a fuga dos símbolos tradicionais da esquerda), eis o real significado, postado por um conhecido no facebook:
Lors d’une passionnante discussion avec un militant du Circulo Podemos de Montreal, j’ai découvert que la mystérieuse couleur mauve de ce parti renvoie au drapeau de la Seconde République espagnole. “Treize jours après la proclamation de la République, le gouvernement provisoire promulgue un Décret, publié dans la Gazeta de Madrid du 28 avril 1931, l’adoption du drapeau national qui détermine la première distinction républicaine, dont la principale caractéristique est la couleur mauve de la révolution; le rouge et le jaune sont les couleurs d’Aragón, cette république s’identifie aussi avec la triade de « Égalité, Liberté et Fraternité ».”