A vassoura do sistema: sessões de terapia

Aqui estão as sessões de terapia de Lenore Beadsman com o Dr. Curtis Jay, extraídas e traduzidas de ‘The Broom of the System’, de David Foster Wallace, sem nenhuma autorização. Atualizarei conforme for traduzindo.

Ítalo

8 - 1990

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TRANSCRIÇÃO PARCIAL DE SESSÃO DE TERAPIA, QUINTA-FEIRA, 26 DE AGOSTO DE 1990, ESCRITÓRIO DO DR. CURTIS JAY, PhD. PARTICIPANTES: DR. CURTIS JAY E SR.ª LENORE BEADSMAN, 24 ANOS, REGISTRO NÚMERO 770-01-4266

DR. JAY: Então poderíamos definir o dia de ontem como um dia nem um pouco bom, então.

SR.ª LENORE BEADSMAN: Sim, acho que é uma boa forma de avaliar.

JAY: E como você se sente em relação a isso?

LENORE: Bom, eu acho que meio que por definição um dia que não é nem um pouco bom faz você se sentir uma merda, né?

JAY: Você se sente pressionada a se sentir uma merda?

LENORE: Como?

JAY: Se um dia ruim é por definição um dia que faz você se sentir uma merda, você se sente pressionada a se sentir uma merda em relação a um dia ruim, ou se sente natural em relação a isso?

LENORE: O que é que isso tem a ver com alguma coisa?

JAY: A pergunta deixa você desconfortável.

LENORE: Não, a pergunta me deixa como se eu tivesse ouvido uma pergunta idiota e sem sentido, o que eu receio que ela tenha sido.

JAY: Não acho que seja idiota, de forma alguma. Não é você que reclama de se sentir pressionada e coagida a sentir e fazer as coisas que você sente e faz? Ou será que eu confundi você com uma outra velha amiga e cliente?

LENORE: Olha, acho que podemos afirmar que eu me sinto uma merda porque estão acontecendo coisas ruins, né? Minha avó Lenore estava se sentindo absurdamente estranha e melodramática por mais ou menos um mês, e daí decide ir embora do lugar onde ela deveria estar morando como uma semi-inválida com a doença do sangue frio e levar gente com ela, mesmo ela tendo 92 anos, e não se dá nem o trabalho de ligar para dizer o que está acontecendo, mesmo eles obviamente ainda estando em Cleveland, veja por exemplo o andador do Sr. Yingst, que só poderia ter entrado no meu quarto pelas seis e meia de ontem, e meu pai claramente sabe o que está acontecendo, veja por exemplo que o Karl Rummage disse pro Sr. Bloemker tudo isso ontem de manhã antes que ninguém mais soubesse, e ele também não se dá o trabalho de me avisar, e vai embora para Corfu, e eu acho que alguém deu LSD para o meu passarinho Vlad o Empalador, porque agora ele não cala a boca, o que não é do feitio dele, e ele convenientemente tem dito coisas mais obscenas, que se a Sra. Tissaw ouvir vai ficar uma arara e me despejar, e o meu trabalho tem me torrado a paciência porque tem tido uma confusão enorme nas linhas do telefone e nós não temos mais o nosso número e as pessoas ficam ligando querendo falar com todo tipo de lugar bizarro, e obviamente nenhum sinal da Interativa Conexões hoje de manhã, e daí na recepção eu recebo um monte de flores e uma caixa de bombom quase vazia que era pra ser uma piada, e calha delas serem do Sr. Bombardini.

JAY: Norman Bombardini?

LENORE: …Sim, que é o proprietário do nosso prédio, na Frequente e Vigoroso, e que é inacreditavelmente gordo e hostil, e como bônus também é claramente demente, e acha que está me fazendo um enorme favor me prometendo um cantinho, com o perdão pela piada, nisso que em breve será um universo inteiro todo para mim, e ele diz que está apaixonado por mim.

JAY: E também tem naturalmente o Rick.

LENORE: O Rick é o Rick. O Rick é uma constante em toda equação. Vamos deixar o Rick fora disso.

JAY: Você se sente desconfortável falando do Rick nesse contexto.

LENORE: Que contexto? Não tem contexto. Um contexto implica que haja coisas conectadas acontecendo juntas. E tudo que está acontecendo agora é que uma vida fodida que mal funciona direito agora está funcionando menos direito.

JAY: Então a mulher está preocupada que a vida dela não está “direito”.

LENORE: Vai chupar uma pedra.

Dr. Jay pausa. Lenore Beadsman pausa.

JAY: Mas… interessante.

LENORE: O quê?

JAY: Você não acha? Você não acha que é interessante a situação? A série de situações?

LENORE: No sentido de…

JAY: No sentido de muito pouco. Só que se alguém vai se sentir uma merda, para continuar usando o termo que você usou, por não ter “controle” suficiente das coisas, e nós, claro, admitimos livremente que ainda não conseguimos articular satisfatoriamente o que queremos dizer com isso, não é…?

LENORE: Meu Deus, “nós”, no plural agora.

JAY: …que é pelo menos, em comparação, desejável estar envolvido em uma situação interessante do que numa sem graça, não é o caso?

LENORE: Interessante para quem?

JAY: Ah. Isso é importante para você.

LENORE: É muito importante para mim.

JAY: Estou sentindo cheiro de ruptura, tenho que dizer. Tem um perfume de ruptura no ar.

LENORE: Acho que é o meu sovaco. Acho que eu preciso de um banho.

JAY: Se esconder atrás de máscaras sintomáticas não é justo. Se eu digo que sinto cheiro de ruptura é porque eu sinto cheiro de ruptura.

LENORE: Você sempre diz que sente cheiro de ruptura. Agora você sente cheiro de ruptura quase toda vez que eu venho aqui. Eu acho que você deve passar uma ruptura ao redor das narinas logo que acorda toda manhã. E o que é que significa isso, “ruptura”?

JAY: Você que me diga.

LENORE: Esses cintos de segurança na poltrona não são para a segurança do paciente no meio do caminho, né? São para evitar que arranquem a sua jugular umas trinta vezes por dia, correto?

JAY: Você sente raiva.

LENORE: Eu me sinto uma merda. Merda pura, sem nenhuma coação. Interessante para quem?

JAY: Quem é que está por aí e pode se interessar?

LENORE: E que merda isso significa?

JAY: O cheiro de ruptura está ficando mais fraco.

LENORE: Bom, veja.

JAY: Sim?

LENORE: Imagina que a vovó me diz de forma bem convincente que tudo que existe na minha vida é o que pode ser dito dela.

JAY: E o que é que isso significa?

LENORE: Você sente raiva.

JAY: Eu tenho um botão de ejetar, você sabe. Eu posso apertar o botão na parte de baixo dessa gaveta, aqui, você sai voando e gritando para dentro do lago.

LENORE: Você deve ser o pior psicólogo que já existiu. Por que você nunca me deixa continuar com os meus pensamentos?

JAY: Desculpa.

LENORE: É para isso que eu estou aqui, não é? Para isso que eu pago você mais ou menos dois terços do que eu ganho, não é?

JAY: Me sinto honrado e envergonhado ao mesmo tempo. De volta à avó, e a vida que é contada, não vivida.

LENORE: Certo.

JAY: Certo.

LENORE: Então, o que isso significa?

JAY: Eu falo com toda sinceridade: me diga você.

LENORE: Então, parece que não é exatamente uma vida que é contada em vez de vivida; é só que o viver é o contar, que não tem nada acontecendo comigo que não seja contado ou contável, e, se for isso, qual é a diferença? Por que viver?

JAY: Eu não entendi.

LENORE: Talvez não faça sentido. Talvez seja só completamente irracional e idiota.

JAY: Mas obviamente incomoda você.

LENORE: Afiadíssima a percepção. Se não tem nada em mim exceto o que pode ser dito de mim, o que é que me separa da senhora na história do Rick que começa a comer fast-food, ganha peso e esmaga a criança enquanto dormia? Ela é exatamente o que é dito dela, não é? Absolutamente nada mais. E a mesma coisa comigo, parece. A vovó me diz que ela vai me mostrar como uma vida é só palavras e nada mais. A vovó diz que palavras podem matar e criar. Tudo.

JAY: Parece que a vovó já está um pouquinho mais para lá do que para cá.

LENORE: Não, não. Ela não está gagá e certamente não é burra. Você deveria saber. E, veja, a questão é, se ela consegue fazer tudo isso comigo com palavras, se ela consegue me fazer me sentir desse jeito, e perceber a minha vida como toda fodida e errada, e questionar se eu sou mesmo eu mesma, se existe um eu, por mais louco que isso pareça, se ela consegue fazer tudo isso só falando comigo, só com palavras, o que é que isso diz das palavras?

JAY: “…diz ela, usando palavras”.

LENORE: Bom, exato. É isso. A Lenore concordaria cem por cento. E é por que às vezes eu fico maluca que o Rick queira “conversar” toda hora. Conversar, conversar, conversar. Contar, contar, contar. Pelo menos quando ele me conta histórias, é limpo e cristalino o que é uma história e o que não é, certo?

JAY: Estou sentindo um cheiro.

LENORE: Eu acho que a teoria do sovaco não deve ser totalmente rejeitada.

JAY: Por que uma história é mais cristalina do que uma vida?

LENORE: É só que parece mais honesta, por algum motivo.

JAY: Honesta quer dizer mais perto da verdade?

LENORE: Sinto cheiro de cilada.

JAY: Sinto cheiro de ruptura. A verdade é que não há diferença entre uma vida e uma história? Mas que uma vida finge ser algo a mais? Mas é mesmo algo a mais?

LENORE: Eu mataria por um banho agora.

JAY: O que eu disse? O que eu disse? Eu disse que ansiedade por causa de higiene é o quê?

LENORE: De acordo com quem?

JAY: Ejeção continua sendo uma opção. Não tente desvirtuar assim na cara dura. De acordo comigo e com meu grande professor, Olaf Blentner, o pioneiro da pesquisa em transtornos de ansiedade por higiene…

LENORE: Transtorno de ansiedade por higiene é um transtorno de identidade.

JAY: Estou me afogando numa nuvem de ruptura.

LENORE: Eu estou com problema digestivo também, então, mesmo, não…

JAY: Chega. Então comparações entre vida real e histórias fazem você ficar com ansiedade por higiene, ou seja, transtorno de identidade. Além disso, o fato de que a querida e simpática vovó Lenore, cuja pequena excursão, devo dizer, não me deixa exatamente com pena, doutrina você na questão palavras e sua eficácia extralinguística. Me ajuda com uma conta aqui, Lenore.

LENORE: Errado. Primeiro, a coisa toda da vovó é que não existe isso de eficácia extralinguística, qualquer coisa extralinguística. E também, por que essa de ficar usando palavras como “doutrinar” ou “eficácia” pra lá e pra cá? Que o Rick usa comigo toda hora também? Como pode que você e o Rick não dizem só a mesma coisa para mim, mas com as mesmas palavras? Vocês são um time? Você manda relatórios para ele? É por isso que estranhamente ele está tão de acordo em não me perguntar o que acontece aqui? Você é um psicólogo anti-ético? Você conta isso?

JAY: Olha, deixa eu falar uma coisa. Além de eu ter ficado incrivelmente ofendido com isso que você disse, por que essa obsessão com se as pessoas estão contando toda hora? Porque contar é tirar o controle?

LENORE: Não sei. Que horas são?

JAY: Você não vê diferença entre sua vida e uma história contada?

LENORE: Talvez passar um pouquinho da água daquele jarro aqui, embaixo de cada sovaco…

JAY: E…?

LENORE: Não, acho que não.

JAY: Como? Por quê?

Lenore Beadsman pausa.

JAY: Por quê?

LENORE: Qual seria a diferença?

JAY: Mais alto, por favor.

LENORE: Qual seria a diferença?

JAY: O quê?

LENORE: Qual seria a diferença?

JAY: Eu não acredito nisso. Blentner ia dar uma pirueta agora. Você não sente nenhuma diferença?

LENORE: Bom, exatamente, mas o que exatamente é “sentir”?

JAY: O cheiro está  inacreditável. Não estou aguentando. Me deixa só amarrar esse lenço no meu nariz, aqui.

LENORE: Fraco.

JAY: (abafado) Quem se importa com a definição? Você não consegue sentir? Você consegue sentir a sua vida; quem é que consegue sentir a vida da mulher do fast food na história do Rick?

LENORE: Ela! Ela consegue!

JAY: Você está louca?

LENORE: Ela consegue se está na história que ela consegue. Não é? Diz que ela sente um remorso tão grande por ter matado o filho dela que ela entra em coma, então ela sente.

JAY: Mas isso não é real.

LENORE: Parece ser tão real quanto disseram que era real.

JAY: Talvez sejam suas axilas, afinal.

LENORE: Vou embora.

JAY: Espera.

LENORE: Aperta o botão Start da cadeira, Dr. Jay.

JAY: Jesus.

LENORE: A vida da mulher é a história, e se a história diz “a bela mulher obesa se convenceu de que sua vida era real”, ela é real. Só o que ela não sabe é que a vida dela não é dela. Existe por um motivo. Servir como um argumento, ou ser engraçado, sei lá. Ela não é nem produzida, é deduzida. Está lá por um motivo.

JAY: Motivo de quem? Motivos como nos motivos de uma pessoa fazer alguma coisa? Ela deve sua existência à pessoa que conta?

LENORE: Mas não é nem necessariamente uma pessoa, esse é o ponto. Contar é o próprio motivo. A vovó diz que contar qualquer coisa automaticamente cria uma espécie de sistema, que controla todos os envolvidos.

JAY: E como é isso?

LENORE: Pela própria definição. Contar alguma coisa é criar, limitar, definir.

JAY: Idiotice tem um cheiro próprio, você notou?

LENORE: A senhora obesa não é de fato real, e na medida em que ela é real ela só é usada, e se ela pensa que ela é real e não usada, é só porque o sistema que deduz e usa ela faz ela por definição se sentir real e não-deduzida e não-usada.

JAY: E você está me dizendo que é assim que você se sente?

LENORE: Você é burro. É de verdade mesmo aquele diploma de Harvard? Eu tenho que ir. Me deixa ir embora, por favor. Tenho que ir no banheiro.

JAY: Venha me ver amanhã.

LENORE: Eu não tenho mais dinheiro.

JAY: Vem me ver assim que você tiver dinheiro. Estarei aqui por você. Pede para o Rick te dar dinheiro.

LENORE: Põe minha cadeira pra rodar, por favor.

JAY: Fizemos um enorme percurso hoje.

LENORE: Na sua cabeça.

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