A ilusão do Brasil polarizado

Os grupos favoráveis e contrários ao impeachment de Dilma — agora arrefecidos com a apatia geral instalada com o governo interino — pareciam demonstrar um fato claro sobre a sociedade brasileira: vivemos em um tempo de cisão profunda entre visões políticas incompatíveis e opostas diametralmente. Nenhuma mediação política é possível e propostas de construção alternativa de projetos políticos agregadores são imediatamente solapadas. As siglas partidárias que refletiriam institucionalmente essa divisão social são PT e PSDB, desde a abertura democrática do Brasil pós-1985.

Se a polarização foi verdadeira nos anos 80, porém, não é mais no momento presente. O sistema político nacional organiza-se de forma a exigir do governo uma maioria maciça no Congresso para que consiga governar minimamente. Como mostra Marcos Nobre, em recente artigo publicado na revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, a grande massa da representação política federal, desde a Constituinte, é composta de um único bloco fisiológico e hegemônico, conhecido como “pemedebismo”. O projeto político que estiver no poder, assim tem exigido o sistema, precisa negociar e internalizar como base aliada o centrão pemedebista para sobreviver. A polarização, dessa forma, está apenas nas “franjas” da política institucional — se é PT ou PSDB que calha de estabelecer alguma comunicação com o grupo político que manda no país.

Ao contrário de Nobre, porém, que identifica um descompasso entre, de um lado, uma polarização meramente aparente no sistema político institucional e, de outro, uma verdadeira fissura na sociedade civil, há razões para crer que, embora por motivos diferentes, a sociedade civil está cindida apenas aparentemente. É inegável que é possível identificar a existência de pelo menos dois polos de discursos inflamados e contrários: o antipetismo e o petismo. Todavia, tais discursos parecem ter tração apenas como discursos, isto é, como elementos que interagem como vetores retóricos em um espaço de discussão conhecido como “esfera pública”.

A esfera pública é constituída por discursos. Por ser composta da maneira como a conhecemos, porém, sobretudo no caso brasileiro de uma grande imprensa organizada sob a forma de oligopólio, os discursos que interagem nela podem muito bem não ser representativos das forças políticas que de fato estão atuando na sociedade civil. Indicativo disso é a dificuldade de encaixar recentes pesquisas sobre a reação popular aos governos Dilma e Temer na lógica da polarização social. Uma delas, tornada pública através do escândalo de divulgação de dados manipulados pela Folha de S.Paulo, diz que uma maioria expressiva, 62% dos brasileiros, é a favor da renúncia tanto de Dilma quanto de Temer. Se entendermos Dilma como representante do petismo e Temer como chefe de um governo inflamado pelo antipetismo, veremos que a marcação clara de posicionamento se esvai. A rejeição a ambos, somada à baixa aprovação de qualquer possível pré-candidato para o pleito de 2018, representa muito mais uma descrença com o sistema político de forma ampla do que o acirramento de uma disputa polarizada.

Parte dessa distância entre uma esfera pública aparentemente polarizada e uma sociedade civil unida em geral em torno de uma rejeição do sistema político, na forma como o conhece, pode ser explicada pelo desacordo entre a composição das grandes narrativas políticas nacionais e a maneira como se está fazendo política hoje. A colonização discursiva que o petismo causou à esquerda, por exemplo, como resultado até mesmo não intencional de seus anos de governo, acabou por fazer com que não se pudesse dar conta de apreender mudanças substanciais nas formas de organização política de base que têm tido lugar no Brasil — desde uma rejeição frontal a qualquer produto oriundo de junho de 2013, por exemplo, até a incapacidade de lidar com o espaço onde melhor se tem feito política hoje: os assentamentos urbanos, espaços públicos e escolas ocupadas.

Em meio a um desmoronamento das instituições construídas durante a Nova República, a narrativa da polarização social fica enfraquecida. O desafio, nesse cenário, deve ser, primeiro, o de enfrentar as investidas de discursos fundamentalistas que tem se mostrado ameaçadores não só aos avanços das políticas de esquerda, mas à própria possibilidade da convivência democrática. E complementarmente, de encontrar maneiras possíveis de tornar visíveis as novas formas de organização política que surgem e lhes reivindicar espaço próprio na construção discursiva do político.

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