Largou a navalha, colocou-a sobre a pia do banheiro, caminhou até a sala e sentou-se à direita de seu pai, que dormia ereto no sofá. Desistiu por um instante de obedecer ao que mandava seu corpo e resolveu ser dono de sua mente, pelo menos pelo tempo que conseguisse. Encarou por um longo tempo a cabeça gorda de seu progenitor, que mantinha a boca entreaberta e roncava baixinho. A televisão estava ligada, passava a reprise do jornal da meia-noite em um volume baixo, já eram quase duas da madrugada. Não conseguia dormir naquela noite. Desde a última vez que acordara, sentia como se a realidade não passasse de uma máscara daquelas que tampam os olhos para dormir, só que com o macabro efeito inverso, como se vestisse uma máscara de realidade enquanto estava, na verdade, dormindo.
Desconcentrou-se de sua incursão contemplativa sobre o rosto de seu pai quando ouviu um barulho vindo da cozinha, de onde se originava uma fonte de luz branca e fria que ajudava a iluminar a sala. Era uma louça molhada no escorredor que havia deslizado. Foi até lá. Sentiu como se não pertencesse àquele lugar. Há um tempo vinha tendo o mesmo sentimento em relação a qualquer outro lugar em que estivesse, a qualquer momento. Ao mesmo tempo em que se sentia preso, enclausurado, também sentia como se não houvesse chão nem paredes ao seu redor.
Da janela da cozinha do apartamento no décimo sétimo andar onde morava com seus pais, viu no prédio vizinho a silhueta de alguém. Contornando o rapaz, a luz oscilante projetada na cortina indicava que havia uma televisão ligada. Tentou chegar a qualquer conclusão sobre isso e, apesar de não ter conseguido, continuou observando atentamente. Sua mente parecia se esvaziar cada vez mais. Sentia-se perdendo o controle de novo, mas não tinha mais nenhuma preocupação.
Calma e vagarosamente, dirigiu-se até seu quarto, de onde também podia ver a janela. Com a luz apagada, foi até o parapeito e lá se sentou, com as pernas para fora. Continuou a observar a janela do outro prédio, que ficava à altura dos seus olhos. Questionava-se, agora, o que aquele sujeito poderia estar fazendo e, principalmente, até quando aquela cena perduraria. Continuou observando. Já passavam das três horas, apesar de não saber disso. Tempo depois, a sombra se mexeu na cortina e se expandiu até tomá-la por inteiro. Não havia mais luz tremulante. A televisão fora desligada. A pergunta, então, foi respondida: a cena perduraria até aquele momento.
As dúvidas sumiram de sua mente, assim como tudo mais. Não entendia mais nada, talvez nem fosse mais nada. Erigiu seu corpo no parapeito da janela e escorregou lentamente da janela de seu quarto no décimo sétimo andar. Sentiu-se aliviado antes de tocar o chão e causar um barulho. Se foi da mesma maneira que veio: inconsciente, inocente e, principalmente, anônimo.