A identidade e o self na era da hiperconexão

Eis um rascunho de um esboço de uma ideia.


Nossa mente é o self, consciência de si.

Em (ou até o fim de) os tempos analógicos, nossa mente só conhecia uma identidade, a nossa Identidade. Os outros selves com quem convivíamos ligavam nosso self àquela identidade, pois era a de que sabiam.

Meu self (consciência) se expressava somente através daquela identidade. Todos que conheciam meu self o alcançavam através daquela minha identidade. Meu pai não conhecia meu self senão através da minha identidade. O pároco da minha aldeia sabia que minha identidade era correspondente a um self, que era o meu. Ninguém mais era meu self, assim como ninguém mais portava a identidade que meu self portava. Meu self detinha a exclusividade sobre minha única identidade. Havia uma identidade exclusiva entre meu self e minha identidade. Até então.

A modernidade trouxe formas novas de reconhecimento.[1] Meu self pode passar a ser visto através de identidades diferentes dependendo de quem o procura. Meu self se mostra exteriormente através de diversas identidades. A cada círculo a que pertenço, falando grosseiramente, corresponde uma identidade. À minha família eu porto uma identidade (I’), ao meu círculo íntimo de amigos, porto outra identidade (I’’), aos meus colegas de trabalho, ainda uma terceira identidade (I’’’). Todas essas identidades “apontam” para o mesmo self. O self, a priori, é sim uno. Se não o for, não me interessa. Supomos que o seja. O self é um só. Com a modernidade ele pode ser conhecido pelas demais consciências através de diferentes identidades. Mais ou menos uma para cada grupo ou círculo de pessoas com quem interajo.

A moldagem dessas diferentes identidades se faz a partir de como meu self é visto pelas outras consciências de um grupo. Minha identidade é formada através da cooperação com e da luta contra outros selves. Se um grupo a, com quem interajo, me vê como portando característica “x”, e essa for uma visão relativamente/razoavelmente compartilhada pelos membros do grupo, ou melhor, se a visão de mim como “x” for uma visão de grupo, antes do que de cada indivíduo do grupo, minha identidade (a identidade a do meu self) terá a característica “x”. Se o grupo me vê como “x”, para o grupo minha identidade será “x”.

Nada impede, entretanto, que outro grupo, b, me veja como portador de características “y”, ou melhor, me veja como “y”. Caso assim ocorra, estarei sendo influenciado a ser “x” para o grupo a e “y” para o grupo b. Entendendo o grupo como formador de identidade, serei “x” para a e “y” para b. Meu self, aqui, não pode ser exteriorizado senão através de tantas identidades quanto forem os grupos e suas interseções. O self que antes era identificado através da identidade I, agora é identificado através das identidades I’, I’’, I’’’, e assim por diante. Quanto mais grupos, indivíduos e interseções que interajam com meu self, mais identidades distintas haverá. Mais identidades distintas .

O caso parece ser outro, e esse é meu argumento, na passagem da modernidade “pura” para o momento da modernidade na era da hiperconexão, ou, para efeitos práticos, a pós-modernidade.

Nos tempos antigos, o self possuía uma “identidade” com sua identidade única. O alfaiate era o alfaiate onde quer que fosse – dentro e fora de casa, para o rei e para a filha. No que chamamos modernidade, surge a possibilidade da distância entre o self e suas identidades. O que era identidade uma se desdobra ou ex-plica em múltiplas possíveis identidades, cada uma portando como signo definir a imagem imposta pelo grupo onde é exposta.[2] O alfaiate é pai e esposo em casa, chefe no trabalho, cidadão no Estado… – tantas identidades quanto forem as esferas em que sua existência penetre. A pós-modernidade, porém, com ferramentas como a mundialização, a hiperconexão, a hipervelocidade, a escassez (de recursos, tempo…) e o hipertexto, funciona como um trator que achata a cadeia de colinas identitárias. As identidades, que eram múltiplas, passam paulatinamente i) a se fundirem novamente em uma só, ii) sendo essa nova identidade uma vastamente propícia a ser moldada pelo próprio self, não mais pelos grupos.

i) O que era I’, I’’, I’’’ […] vai novamente se tornar I. E isso acontece pela gradual dissolução das paredes que separam cada grupo ou esfera de penetração do self. O achatamento da cadeia de colinas identitárias fará com que meu self interaja de forma cada vez mais homogênea com os diferentes grupos. Ao manter um perfil virtual em uma rede social, interajo com todos os contatos de maneira não discernente entre cada indivíduo ou grupo. Aceito como “amigo” ou “seguidor” tanto minha mãe, quanto meu amigo, quanto meu colega de trabalho, quanto meu superior hierárquico. E com todos compartilho o mesmo conteúdo. Todos os – até então – diferentes grupos sociais com quem meu self interagia passarão a me ver de forma mais ou menos igual uma à outra. Quanto menos a distinção, mais fracas as paredes que separam um grupo do outro e menor a diferença entre as formas como cada grupo me vê. Sendo o cume distópico dessa dinâmica a fusão de todas as identidades em uma, única. As identidades múltiplas dariam lugar à nova identidade uma, porém não identificável com o self. Melhor, não mantendo nenhuma relação com o self, como explico:

ii) Entendendo que o achatamento do que chamei “vale das colinas identitárias” se dá não por uma mudança a partir dos grupos em relação a mim, ou seja, não a partir da forma como esses diferentes grupos me veem, senão através da minha atitude perante os diferentes grupos, em tratá-los de forma homogênea, me dirigindo a e expressando meu self através da mesma identidade para todos, se conclui que o responsável pela nova moldagem dessa identidade uma não são mais os grupos, mas o próprio self! A partir de quando eu me comunico (porque tenho as ferramentas) de forma cada vez mais “igual” com o que então eram diferentes grupos, o ônus da moldagem da minha identidade passa a ser meu, tão-somente. As diferentes identidades que eram formadas a partir da minha interação com os outros passam a ser formadas e definidas pelo próprio self, de forma individualizada e desvinculada, mas de nenhuma forma neutra. Meu self, através do pensar, constrói uma identidade que deverá servir a todos, do meu parceiro sexual ao meu empregador. Meu self constrói a identidade que bem (ou mal) entender, de forma não dialógica. Não há mais as diferentes formas de reconhecimento pelos diferentes grupos, pois agora há novamente só um “grupo”, os que interagem com meu self. Minha identidade passa a ser o produto arbitrário da minha vontade individual imediata, sem nenhuma mediação a priori. Formarei minha identidade a partir do que quero que seja visto no meu self, não do que realmente é visto.

[continua…]


[1] Ver TAYLOR, C. The Sources of Self. e MEAD, G. H. Mind, Self, and Society.

[2] De forma análoga é o uso da máscara no teatro grego. Nesse sentido, ver GOFFMAN, E. The Presentation of Self in Everyday Life.

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