A aparência imagética como o injusto

imagem meramente ilustrativa


No início há o vazio, o caos da indeterminação infinita – adimensional e a-histórica, porém situada no tempo. A expressão do caos se dá no início, ou o início é a determinação do caos. Sem início não há o fim, e sem o caos não há criação (nem destruição), e nem o cosmos. A pobreza (neste caso de tudo) é condição para a criação, e, portanto, para a transformação.[1] O nada é condição para o qualquer e, por fim, para o todo.

O caos, todo-desordenado, é externo para o que se pode chamar todo-Outro, porém nele fixa logicamente sua origem no tempo. O todo-Outro figura como artifício argumentativo pressuposto. É o axioma necessário para a própria concepção do algo, considerando a auto-gestação material impossibilitar a criação, pois já contém desde o início seu todo dentro de si. O caos, dessa forma, não se funda em seu ser-em-si, mas no todo-Outro. A criação que se dá no caos só pode ter como origem um fator externo.

Em relação ao caos, o todo-Outro impera, nesse início: “Faça-se a Luz!”, ou “Seja o Cosmos!” Trata-se da aposta no todo-ordenado e, por consequência, no justo.

Tendo nascido o todo-ordenado, a partir do caos, pode-se falar então do império do Justo, ou do Direito (aqui sinônimos). O que era caos, por interferência “divina”, torna-se cosmos. A situação atual, ordenada, tende a se ordenar tanto quanto a anterior, caótica, se intacta. A ordem se projeta em direção (towards) o infinito.

O Justo estabelecido funciona como o varal de roupas. O justo, assim como o varal, é o ponto mais curto entre os dois pontos nos quais tem seu fundamento fixado (o início e o infinito, no Justo; os dois extremos do cordão, no varal). A tendência do Justo no ambiente é manter-se em perfeita retidão e estabilidade. O Justo deve se manter Justo.

Considerando, entretanto, que é possível, a partir – e em razão – do que era caos, existir a criação,[2] é possível da mesma forma a deformação da retidão do justo. O varal pode se curvar sob a força exercida por um peso. Não é mais uma linha reta. Eis o injusto.

O peso que curva o varal e transtorna a tendência de estabilidade do Justo, é o injusto, ou o erro. O injusto se manifesta como peso que não deve. O injusto é a desobediência à retidão normativa do Justo. Se o devido é justo, a curva causada pelo injusto é indevida. Se é indevida, deve, pela normatividade do Justo, ser anulada.

A forma como o injusto se manifesta é o “fantasma”[3]. O fantasma (o injusto) se mostra como a aparência (a curva), não adequada à essência (a retidão normativa do Justo). O fantasma aparece, mas não é. A aparência do fantasma não é formada por nenhuma essência.[4] O fantasma não faz nem desfaz, pois nunca foi, senão apenas mostrou-se, ou apareceu. Não há nenhuma determinação originária do fantasma no todo-ordenado do cosmos. O fantasma é aberração – voz desencarnada, que, por carecer de determinação, no cosmos só causa caos.

Da mesma forma o injusto, que em si não porta nenhum conteúdo que se coadune com a normatividade do Justo, senão constitui-se apenas de imagem, de aparência.

O varal de roupas tende a manter-se reto e permanecer na condição de caminho mais curto entre os dois pontos que lhe servem de base. O peso a ele fixado (a roupa) causa uma tensão e curva a linha do varal. A partir de quando esse peso é removido, a tendência do varal é voltar a sua forma original: reta.

Espero que o circunlóquio sirva para esclarecer as etapas da dinâmica de anulação do injusto, que se determinam nas seguintes:

  1. O Justo se constitui no todo-ordenado perene que tende ao infinito, bastante em sua retidão e portador de caráter normativo, tendo como fundamento de sua normatividade sua origem exterior.
  2. Embora o Justo seja perene, é também aberto à criação. Havendo tal elemento contingente, se põe a possibilidade da existência do injusto, i.e., da ruptura do Justo.
  3. Considerando a tendência (normativa) do Justo à retidão, o injusto –  por ser mera aparência de Justo, mas não possuindo nenhuma essência tal – tem sua anulação como consequência lógica.

Em suma, retomando a analogia do fantasma: o fantasma se mostra como aberração, como aparência sem essência. Para que o todo-ordenado volte a fazer sentido, a incongruência deve ser eliminada – o fantasma, que era aparência, deve desaparecer.

O injusto, pois, não se acomoda no Justo, mas o subverte.

O injusto, como violação à condição de normativo do Justo, contém “em si mesmo sua negação”.[5] Num sistema lógico, não resta ao justo senão ser anulado e dar lugar ao reestabelecimento do Justo. Saem as roupas e estica-se de novo o varal.


[1] Feuerbach

[2] Sem a abertura à criação (contingente), não há liberdade e, portanto, não há que se falar na possibilidade da existência do injusto, pois que o Justo se teria como determinado de forma imutável. A abertura à criação é, dessa forma, um fato – uma contingência necessária.

[3] Conceitos semelhantes são os de “simulacro” em Umberto Eco e “espetáculo” em Guy Debord, guardadas as devidas proporções e esferas de fundamentação.

[4] Talvez seja formada por uma projeção pela própria ideia de Justo da necessidade de criação, mas isso não me interessa por ora e nem é relevante para meu argumento.

[5] Hegel.

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