A ética ocidental do pequeno-cuidado

Tomar um banho mais curto para reduzir o consumo de água, usar apenas uma toalha de papel para secar as mãos, fazer um voluntariado nos finais de semana, participar de uma ONG para dar ração a cachorros de rua, passar um mês na Etiópia construindo casas e levando tecnologia aos nativos, e segue… “Já pensou se todo mundo se desse conta de que mudando um pouquinho seus hábitos poderia alcançar objetivos enormes e de interesse global???”, “Se cada um fizesse um pouquinho disso já tava bom”. Ou, “se cada um cuidasse um pouco…”.

A esse pensamento odioso e naturalizado como epítome do dever no mundo ocidental eu dou o nome de “ética do pequeno-cuidado”. Explico o nome e o ódio no esboço que vomito abaixo.

O ocidente, dizem, é grego na política, romano no direito e judaico-cristão na ética. A ética cristã que influenciou nosso pensamento ocidental dá uma carga enorme de responsabilidade ao indivíduo e sua vontade livre, ou livre-arbítrio. Para livrarmo-nos do pecado original, cada um de nós deve se submeter a um rito devido e previsto. Mas não só isso. Também as ações que cometemos possuem, todas, uma eventual consequência metafísica e pós-morte. São nossas ações como indivíduos que definem nosso lugar na eternidade – se no inferno ou no céu. Os pecados que cometemos, como sujeitos da religião, devem ser remidos à proporção de sua gravidade. Matar alguém é mais atentador à ordem divina do que trair o cônjuge, portanto sua penitência é maior. Se a remissão do pecado do adultério é rezar quinze ave-marias, a do assassinato é, sei lá, trezentos pais-nossos, ou talvez o cumprimento de uma pena de encarceramento em regime semiaberto, não sei como anda a administração da justiça divina ultimamente. O que quero dizer é que pouco importa a situação concreta que me levou a pecar, o que importa é que, “Senhor, eu pequei”.

Essa visão do indivíduo e da ação individual como redutos de todo valor relevante para fins de julgamento ético é calcada numa lógica do tipo: (i) sou uma pessoa livre e (ii) sei qual é o comportamento devido, ou ético. Portanto, se cometo um pecado, tenho responsabilidade sobre ele, já que, tendo em vista minha liberdade e ciência, poderia me ser exigida uma conduta diferente. Em suma, se eu pequei, por ser livre, poderia também ter escolhido não pecar. A responsabilidade pelo pecado, portanto, é minha.

Essa visão, como talvez já pareça claro, não fica, no nosso mundo, restrita à igreja, mas rege também a administração da justiça secular, através do Estado, e toda a discussão sobre a questão da responsabilidade. A não ser que haja uma situação que escuse diretamente o agente da responsabilização por um crime, como a situação de emergência ou a legítima defesa, p. ex., o sujeito será considerado culpado.

É interessante pensar como essa lógica subjaz a muitos dos nossos juízos sobre responsabilidade e acaba por servir de paradigma também para as discussões sobre o tema da justiça. Também no âmbito da economia, mas principalmente no campo da cultura, após a queda das grandes ideologias no século XX, o indivíduo, em oposição ao coletivo, ressurge como o agente político por excelência, como feixe de interesses a serem mediados com os interesses dos demais indivíduos. Toda transformação fica restrita à vontade do indivíduo, que é o elemento fundante da sociedade.

Sendo livre e vivendo numa sociedade onde os demais indivíduos também o sejam, todo progresso pessoal que eu atingir será consequência do meu interesse e esforço pessoais, desde que respeitadas as condições para que todos permaneçam livres (por exemplo, a lei). As consequências das minhas ações livres, justamente por serem livres, são justas, ou “devidas”.

A partir dessa concepção de sujeito/agente político e da constatação de que o mundo real é uma arena de injustiças, se fortalece a forma de pensar que exemplifiquei no início do texto, como decorrência natural dos pressupostos. Ou seja, se há injustiça, alguém é culpado por ela. E a ética cristã, aqui, se mostra forte novamente ao apontar para as formas de solução dessa injustiça: a ação individual direta no resultado do ato injusto. A injustiça, assim como uma nota de dinheiro, se mostra como que desconectada de sua origem, de sua causa, e entra como outra commodity qualquer no mercado. Com uma diferença relevante: a única moeda que pode comprá-la é a “realização pessoal” (ou o “sentimento de dever cumprido”, ou a “angústia perante o mal”) de um indivíduo particular. Eis a ideia que move o voluntariado. Se há injustiça e isso me incomoda, eu devo agir. Minha ação será responsável por combater a injustiça e restaurar o bem.

Daí surge a ideia do pequeno-cuidado, consagrado no brocardo que me tem servido como moldura para observar as manifestações de boa-vontade da boa e velha sociedade: “Se cada um cuidasse um pouco…”. Assim mesmo sem conclusão, só a premissa. Se cada um cuidasse o suficiente, ou seja, um pouco mais do que cuida, bom… aí seria diferente! E essa diferença se põe como um ideal de justiça, paz, bem, ou razoabilidade. “Se cada um cuidasse um pouco…”, e a conclusão, que nunca vem, é um paradoxo paralisante da espera. Ao mesmo tempo em que prognostica bons ventos no porvir, esbarra na própria impossibilidade de ser pensada. O que vem depois das reticências é uma espécie de Godot do sumo bem – é ansiosamente esperado, mas nunca chega. É o paradoxo do “locus utópico”, o lugar próprio do lugar nenhum.

Desnecessário dizer que esse pensamento não é nada próximo de revolucionário. Através dessa lógica as causas do que se considera injustiça são tomadas como axiomas, restando somente o resultado em si para ser fruto da minha intervenção como porta-voz do justo.

O que foge ao locutor da ética do pequeno-cuidado é que a injustiça pode aparecer mesmo numa situação onde todas as ações dos sujeitos envolvidos sejam individualmente justas. Como isso? Bom, peguemos o exemplo da prostituição, usado aqui de forma modificada em relação ao original, encontrado em Responsibility for Justice, livro póstumo da americana Iris Marion Young. Pressuponhamos que a prostituição seja um crime previsto em lei e que essa lei seja de conhecimento de todos. Em uma dada cidade, existem duas adolescentes de 16 anos. A primeira é filha de uma família de classe média e frequenta uma escola particular. A segunda mora na periferia e não estuda, pois tem que ficar em casa cuidando de sua mãe, portadora de uma doença crônica. As duas se envolvem com outra pessoa e acabam ficando grávidas. Nove meses depois, a primeira menina, de classe média, tem sua vida muito pouco modificada. Continua frequentando a escola normalmente e quem toma conta do seu filho são os avós. A segunda, entretanto, teve que achar uma forma de conseguir dinheiro para manter a si e ao filho e apelou à prostituição. Pergunta-se, nesse exemplo, em que o exato mesmo fato aconteceu para duas pessoas, por que uma deve ser punida por ter atentado contra a lei e a outra não? Nesse caso, o que se quer salientar é que ambas agiram da forma que foi mais fácil ou adequada para seguirem suas vidas. Teria sido a decisão da menina da periferia em se prostituir para conseguir dinheiro tão livre quanto a da menina de classe média em não se prostituir? Se não foi – no caso, se houve outros elementos que influenciaram e reduziram o espectro de decisão – por que puni-la? O exemplo tenta mostrar que, por mais que todas as ações envolvidas no problema sejam tomadas sob o mesmo princípio, o resultado pode variar de uma situação para outra. Quer dizer, a vontade livre do sujeito como juiz de si mesmo não é o único fator que dirá a justeza de um ato. Se a situação de fundo for injusta, não faz sentido falar em qualquer tipo de paridade de poder decisório, já que o resultado invariavelmente será injusto. O exemplo mostra como naturalizamos a ideia da responsabilização individual para os problemas de injustiça.

A partir daí podemos pensar o problema em outros âmbitos, onde essa lógica aparece através da tentativa de remediar individualmente problemas que estão absolutamente além da capacidade do agente individual, se dividindo, a meu ver, em dois grupos: o primeiro, onde a atividade individual é totalmente inócua; o segundo, onde só serve para reforçar as condições criadoras da injustiça.

No primeiro grupo encontram-se as campanhas de redução do consumo de água e eletricidade, por exemplo (a escassez de água será tomada aqui como uma situação de injustiça). As campanhas costumam focar no âmbito residencial familiar, onde a mudança, no caso o racionamento de água, só pode ser alcançada se cada um fizer sua parte, cuidando para tomar um banho de menos de cinco minutos, não lavar o carro com a mangueira aberta, fechar a torneira enquanto estiver escovando os dentes etc. A princípio parece algo totalmente adequado a se fazer. Ora, o problema é a falta de água. Se eu gastar menos água, teremos água por mais tempo. Esse raciocínio, entretanto, não leva em conta que o consumo doméstico de água potável é responsável por menos de 20% do consumo total de água (no exemplo brasileiro). Os outros 80%, quatro quintos do total, são distribuídos entre indústria, pecuária e agricultura. Se se tem o objetivo de reduzir substancialmente o consumo de água, o foco deve ser os maiores consumidores, não o consumidor doméstico, que, com sua boa vontade cidadã, não vai causar nenhuma mudança em lugar nenhum.

No segundo grupo está a abordagem afirmativa de injustiças no campo simbólico, ou cultural. Quando um grupo “esclarecido” vai “exercer sua cidadania” indo até a favela e construindo pracinhas ou canteiros, por exemplo, o único sujeito de alguma mudança real é o membro do grupo, que encampou a gloriosa missão de fazer alguma coisa para um mundo melhor. Esse tipo de ação faz com que o morador “beneficiado” com aquela obra fique numa posição de subalterno em relação ao “agente”. Não poucas vezes o mesmo sujeito reformador que faz esse tipo de (des)serviço ignora totalmente a situação de fundo que criou o problema que ele busca sanar – o exemplo é do profissional liberal instruído que no final de semana dedica seu tempo a construir pracinhas para crianças carentes da vila, ao mesmo tempo em que paga um salário miserável pra empregada, moradora da mesma vila. Ao tentar sanar as consequências imediatas de uma injustiça, é facilmente esquecido que o resultado tem uma causa. Tratando as determinações tópicas do problema, são afirmadas as condições que o criam. A atitude do crusading reformer não só não resolve o problema como, por fim, o corrobora.

É objetável, de toda forma, o seguinte: Ora, partindo da constatação de que existe injustiça no mundo e eu acho que tenho condições de fazer alguma coisa contra ela, devo mesmo assim cruzar os braços e esperar a revolução chegar? Não, absolutamente. Nem todo saneamento (hipotético) de injustiças passa por uma derrocada de seus pressupostos, das condições que a criam. Não é razoável pensar que medidas redistributivas não são devidas porque criam uma situação de subjetivação do recipiente ao Estado, por exemplo, ou seja qual for a instituição que a organize. No caso da pobreza, pode-se dizer que, nesses termos, só é possível pôr fim a ela com uma revaloração total da ideia de propriedade privada, de mérito ou de sorte – ou seja, a única saída sendo a revolução. Entretanto, novamente, acho que não é razoável ignorar totalmente um problema que existe hoje sob o pretexto de uma panaceia “em algum lugar no futuro”. Esse raciocínio se parece muito, inclusive, com a ideia do pequeno-cuidado, apenas com outros termos. É preciso que situações de injustiça sejam observadas com um foco no presente, no sentido de sanar situações que impeçam, por exemplo, uma pessoa de ter acesso a condições mínimas de uma sobrevivência “digna”. Apenas é preciso ter em mente que essas ações costumam passar por processos pesados de ressignificação simbólica e redistribuição econômica, e que eu, como indivíduo, por mais bem intencionado que seja, muitas vezes não só não vou poder ajudar como também minha intervenção só vai servir para piorar a situação.

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