Acabei ontem de ler The Parallax View, um calhamaço teórico amplamente conhecido de autoria do esloveno Slavoj Zizek. O livro é uma coisa bonita já na capa (i.e. dust cover), que tem tudo a ver com o título – a visão em paralaxe. Ostenta uma pintura de uma poltrona com uma mesinha do lado. No outro lado da capa, virando o livro, tem o resto da pintura: o Lênin escrevendo. Rá! A edição também é ótima, da editora universitária do MIT.
O Zizek fala de todos os assuntos no livro, filosofia da mente, da história, pós-estruturalismo, esquerda contemporânea, Stálin, judeus, biopolítica, psicanálise, Lacan, Hegel, Marx etc. A ideia subjacente da visão em paralaxe (que nem subjaz tanto assim) é a do algo que não pode ser visto/experimentado na sua totalidade, apenas e tão-somente de um ponto de vista determinado; como uma moeda, cujos dois lados não podem ser vistos ao mesmo tempo. Não sei se entendi muito das implicações dessa proposição, ou muito do livro em si (as referências a coisas que eu não li pululam), mas não quero fazer uma resenha do livro aqui, só expor uma ideia que me chamou a atenção.
A ideia, originária de um texto do Alain Badiou, é mencionada pelo Zizek na página 334. Cito:
Against [Simon] Critchley’s call for modest local ‘practical’ action, I am therefore tempted to cite Badiou’s provocative thesis: ‘It is better to do nothing than to contribute to the invention of formal ways of rendering visible that which Empire already recognizes as existent.’ Better to do nothing than to engage in localized acts whose ultimate function is to make the system run more smoothly (acts like providing space for the multitude of new subjectivities, and so on). The threat today is not passivity but pseudo-activity, the urge to ‘be active,’ to ‘participate,’ to mask the Nothingness of what goes on. People intervene all the time, ‘do something’; academics participate in meaningless ‘debates,’ and so forth, and the truly difficult thing is to step back, to withdraw from all this. Those in power often prefer even a ‘critical’ participation, a dialogue, to silence – just to engage us in a ‘dialogue,’ to make sure our ominous passivity is broken.
Parece aqui estar sendo esboçado um argumento contrário abstratamente a tentativas de “organização revolucionária” locais, por assim dizer. Primeiro, a ideia é que certas demandas e manifestações “anti-sistêmicas” são essencialmente inalcançáveis, ou insanáveis, tornando sua própria reclamação, pelo caráter “utópico”, algo totalmente absorvido pela lógica do sistema em vigor. Demandas que talvez, como o autor deixa claro no parágrafo anterior ao citado, talvez nem sejam feitas para serem cumpridas, ou exigidas.
Parece-me ser o caso, tomando por exemplo, de manifestações (no sentido de demonstration) “contra” o derretimento das calotas polares. O que se objeta numa manifestação do tipo? O irreversível avanço capitalista na direção da destruição total da natureza? Que tipo de pressão uma manifestação do tipo exerce? E sobre quem? O exemplo me parece ser relevante também por ser difícil identificar-se um responsável individual contra quem as demandas são feitas. Quem é culpado pelo clima? Eu que não sou. O presidente da China, ou dos EUA? Mas eles são só uma pequena engrenagem no sistema. O mesmo com o CEO da British Petroleum, por exemplo. Esse caráter difusor já me parece ser motivo suficiente para, mesmo no nível simbólico, esvaziar de sentido a manifestação.
O caso não seria o mesmo, trazendo para um exemplo mais próximo, com os movimentos de ocupação do espaço público que existem em várias capitais do Brasil? Em Porto Alegre temos o Largo Vivo, que propõe a ocupação para atividades artísticas/culturais/de lazer de espaços como o Largo Glênio Peres, através de eventos periódicos onde uma porção de grupos e pessoas se juntam, comem, bebem, leem poesia, brincam com malabares, bambolês, pintam os rostos e comem docinhos. Em manifestação desse tipo “a polícia nem bate”, como diz um amigo meu. Qual ameaça está sendo oferecida à ordem, ou ao Império[1]? O salto de fé do trecho que eu citei, porém, é entender que não só essas manifestações não minam de forma alguma o sistema, mas tornam suas engrenagens ainda mais azeitadas, as fazem funcionar ainda melhor. Seria preferível, em vez de erigir eventos do tipo à categoria de crítica sistêmica, não fazer nada. O silêncio seria mais eloquente e transgressor do que a crítica vazia. Mas por quê?
Percebe-se que por trás da crítica às “pequenas ações emancipatórias” existe uma concepção de revolução como algo total, ou universal. (E é compreensível que esses termos causem uma coceira no ouvido justamente em função dos eventos revolucionários que tiveram como sítio [gosto da palavra inglesa site] a Europa no século XX – do stalinismo ao nazismo –, todos com pretensões totais, no sentido de progresso histórico inevitável e universalmente vinculante ou de transformação geral voluntária em aspectos de âmbito cultural ou nacional). A revolução virá como um todo, por meio de um primeiro evento que quebre o status quo e dê margem ao segundo evento, que estabelecerá uma nova ordem (social). Só assim é e pode ser uma revolução. A isso se soma a ideia de que o evento revolucionário virá como um must, não como um ought to, ou seja, não será possível senão pôr em prática a revolução. Disso decorre que atos de boa vontade, de voluntarismo, seriam autenticamente anti-revolucionários.
Zizek continua, mais adiante:
The deadlock of ‘resistance’ brings us back to the topic of parallax: all is needed is a slight shift in our perspective, and all the activity of ‘resistance,’ of bombarding those in power with impossible ‘subversive’ (ecological, feminist, antiracist, anti-globalist…) demands, look like an internal process of feeding the machine of power, providing the material to keep it in motion.
A proposição fica clara, até aqui: certas formas de “ação”, por mais bem intencionadas que sejam, acabam senão alimentando a “máquina de poder”. O que resta obscuro, ou cuja justificação seja pressuposta, é como essas ações podem ir tão de encontro a seu propósito. A menção que o autor faz no primeiro parágrafo citado é, como eu disse acima, de um texto de Alain Badiou. O texto é “Fifteen Theses on Contemporary Art”, e o trecho citado é a décima quinta das teses – “É melhor não fazer nada do que contribuir com a invenção de maneiras formais de tornar visível aquilo que o Império já conhece como existente”. Badiou, porém, fala nesses termos em se tratando da arte, como fica claro no parágrafo em que discute a tese:
I think of artistic creation as the creation of a new kind of liberty which is beyond the democratic definition of liberty. And we may speak of something like an artistic definition of liberty which is intellectual and material, something like Communism within a logical framework, because there is no liberty without logical framework, something like a new beginning, a new possibility, rupture, and finally something like a new world, a new light, a new galaxy. This is the artistic definition of liberty and the issue today consists not in an art discussion between liberty and dictatorship, between liberty and oppression, but in my opinion, between two definitions of liberty itself.
A ideia é a de que o papel próprio da criação artística é ser revolucionária – nesses termos, de ruptura e criação de uma nova ordem. Não se trata, como diz Badiou, da oposição entre ditadura e liberdade, mas do conceito mesmo de liberdade que se emprega e nas formas de surgimento dos eventos geradores desse conceito. Matthew Causey, discutindo teatro e performance, comenta sucintamente a tese de uma forma que me parece útil para esta discussão: “[…] simply stating identity which is clearly visible, if not privileged, to empire, is to miss an important opportunity“. Quer dizer, na arte, fazer surgir algo que já seja conhecido pelo sistema é no mínimo uma perda de oportunidade. Fazer saber aquilo que já é sabido é desnecessário e contraproducente.
Se é assim na arte, por que não na política? Como Heidegger faz lembrar, em “A Origem da Obra de Arte”, entre as formas de transfigurar a verdade em trabalho, além do pensamento e da poesia, por exemplo, está a fundação do Estado. Se ampliarmos o escopo de interpretação de fundação do Estado para a práxis política em si, temos uma boa base para entender a proposição original – da preferência pelo silêncio à denúncia vazia.
Eu já havia tratado, de alguma forma, do problema da boa-vontade e de querer fazer alguma coisa em A ética ocidental do pequeno-cuidado, há alguns meses, onde argumentei que o sentimento de injustiça pode causar uma necessidade pessoal de satisfação do desejo de “fazer alguma coisa”, a nível individual, para aliviar ou remediar o problema, o que chamei de ética do pequeno-cuidado, a partir do mandamento: “Se cada um cuidasse um pouco…” , ou seja, se cada um fizer sua parte, o todo se resolve, ou melhora, ou algo que o valha. Tentei mostrar que isso é normalmente uma ilusão e que os maiores problemas abordados dessa maneira costumam ser problemas estruturais, em relação aos quais a ação individual não faz cócegas. O problema do Badiou, por outro lado, é mostrar não que a ação individual é inócua, mas que a própria ação, se não revolucionária, é inócua na consecução de fins revolucionários. Parece um truísmo, A=A, mas acho que já dá pra entender a sutileza do argumento.
A tese de Badiou, desenvolvida de certa forma por Zizek é convencível e me soa particularmente bem. Entretanto, parece ainda carecer de explicitação quanto à própria maneira pela qual o sistema, ou o Império, engole as manifestações não-revolucionárias e delas se alimenta (ou seja, como pode, após elas acontecerem, o sistema sair ainda mais forte). O avanço da tese em relação ao senso comum da esquerda revolucionária é justamente entender que (i) a ação vazia é não só inócua, mas contraproducente e (ii) no deadlock ação vazia e nada, é preferível o nada.
Qualquer contribuição de quem mais se interessar pelo assunto é bem vinda.
[1] Apesar de ser usado o termo Império, é interessante notar o que me parece ser uma crítica a Hardt e Negri quando se põe como exemplo de ações “anti-revolucionárias” (chamemos assim o que eu descrevi acima) o provimento de espaço para o surgimento de uma “multidão de novas subjetividades”, terminologia evidentemente Deleuziana/Hardt-Negriana