Às vezes dá um ‘clec’ no espaço tempo e faz tudo cair no lugar e ficar encaixadinho. Tudo faz sentido agora.
Uma fiscal de trânsito, numa blitz, pára um sujeito que dirigia um carro sem placa, sem carteira. A fiscal aborda o sujeito e diz que o veículo deveria ser apreendido. O sujeito diz que é juiz. A fiscal redargui: “por acaso juiz é Deus?” O sujeito dá voz de prisão à fiscal. A fiscal ingressa com uma ação judicial contra o sujeito; a ação é revertida e a fiscal condenada a pagar cinco mil reais a título de indenização por ironizar uma autoridade. O mais engraçado: a fiscal apelou da decisão, mas o tribunal a manteve, criando o precedente: juiz é Deus sim.
Muito bem.
Deus em si, como sabemos, deu seus últimos suspiros no início do século XX, assassinado (i) pela consciência histórica, (ii) pelo humanismo e (iii) pelo consequente declínio da necessidade de legitimação metafísica pro que acontece aqui debaixo da abóboda celeste. O contato com o divino através de instituições dedicadas, como a Igreja, vai desaparecendo, e o divino volta para si num nível superior e passa a se manifestar de outras formas. A mais gostosa delas: a burocracia estatal.
O mito criador do homem, nesse meio-tempo, deixa de ser a parábola de Adão e Eva e passa a ser o registro de nascimento. Quem diz qualquer coisa legítima sobre mim, incluindo minha vida, é o aparelho burocrático. Para fazer qualquer coisa legítima, tenho que provar, antes de mais nada, que nasci e que não estou morto, através dos comprovantes e registros adequados.
O a autorização para o gozo da legitimidade fica a cargo da burocracia, através de seus oficiais, tabeliães, escrivães, técnicos, analistas, assessores e, a última instância da legitimidade, o supra sumo da escatologia burocrática, perante o qual há de se provar a existência ou inexistência de tudo: o juiz.
Nesse sistema, em vez de Deus, é o próprio juiz que define o que é e o que não é. “O que não está nos autos não existe” e a realidade é um acidente de percurso, uma contingência necessária. Confirmar a divindade do juiz, como no caso da fiscal de trânsito, acaba nem sendo uma inovação ou uma aberração ontológica, mas uma mera explicitação do que já estava pressuposto.
A burocracia, aí incluso o judiciário, é um círculo autopoiético perfeito. Por isso que me encanta. Cada decisão judicial é uma manifestação do Espírito Santo.